A reforma

A principal reforma que tem de acontecer é a da maneira de pensar dos políticos sobre a saúde e o seu significado.

Qualquer intervenção política que se pretenda perene sobre a saúde de uma população exige que as questões da proteção da saúde sejam colocadas nas prioridades da governação e se siga um caminho de saúde em todas as políticas. Os ministérios ou a Assembleia da República, quando com interesses setoriais conflituantes com o direito à proteção da saúde, não podem ser empecilho às políticas saudáveis.

Quase todas as decisões políticas podem ter um impacto direto ou indireto sobre a saúde das populações. Uma população menos saudável é menos produtiva, mais consumidora de recursos e menos eficiente. Numa palavra, será infeliz. E essa infelicidade resultante da perda de saúde está distribuída de forma assimétrica, desde logo com a evidência de que os mais pobres têm pior saúde, ou melhor, não têm saúde. Logo, políticas de saúde que pretendam melhorar o estado sanitário de uma população não podem ser uniformes, para lá dos óbvios condicionalismos geodemográficos, tendo de responder aos problemas globais, mas com atenção à necessidade de nivelar a saúde para todos os estratos sociais e em todos os contextos geográficos e culturais.

A saúde em todas as políticas e a avaliação sistemática de impactos na saúde, das políticas e investimentos, são a chave para uma governação da saúde mais eficaz. Só com um primeiro-ministro clarividente e que perceba as dinâmicas sociais relacionadas e consequentes a uma política dedicada à proteção da saúde, por definição ao bem-estar da população, será possível coordenar e alinhar políticas financeiras, fiscais, económicas, educacionais, laborais, ambientais, habitacionais, urbanísticas, alimentares, de transportes, desporto e lazer, etc.

Por exemplo, para citar apenas um, havendo uma grande e legítima preocupação dos mais jovens, mas não só, com o ambiente, porque não aproveitar esse ímpeto ambientalista para os fazer compreender que ambiente e saúde são um contínuo de interdependência, de tal forma que lutar por um ambiente melhor os obriga a rever o seu estilo de vida, consumos, atividade física, alimentação, et cetera?

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Um dos caminhos que já evidente, no sentido de garantir acesso a serviços de saúde em tempo útil, passa por ir procurar atendimento em todo o sistema de saúde e não apenas no SNS. Em Portugal, o SNS já não consegue garantir acesso em tempo útil a todos que precisam dele. Quem pode, naturalmente os que mais impostos pagam, tem de contratar seguros ou pagar diretamente serviços com o seu dinheiro. Paga o SNS por via dos seus impostos e ainda tem de comprar o que o SNS não lhe dá. É duplamente taxado. Daí que a primeira correção a introduzir será descontar da massa colétavel para IRS a totalidade, sem limites, de todas as despesas de saúde. Claro que esta medida obrigará a uma tipificação muito mais cuidadosa do que serão “despesas em saúde” e a uma regulação mais eficaz de todo o sistema e da sua oferta. Terá custos acrescidos. Mas será mais justo e equivalente a uma redução de impostos.

Olhando de outra forma, será um “aumento” da despesa pública, por via da redução na coleta de impostos, mas a verdade é que o Estado recebe e não gasta com as pessoas que optaram por, ou foram forçadas a, não usar o SNS. Todavia, esta questão que será seguramente contestada pelos fiscalistas mais ardentes, apesar de ser uma forma de compensar as pessoas que suportam o terço da despesa total em saúde, não poderá invalidar a necessidade de manter a despesa pública nos níveis atuais. Eventualmente até poderá ser necessário aumentá-la, ainda que temporariamente, para responder a alguns dos pontos enumerados na “2ª parte”, até o SNS ganhar eficiência e poder gerar poupanças. Em última análise, como dizem os “populistas”, poderão existir fontes alternativas onde colher impostos, em vez de impor taxas escalonadamente crescentes de IRS que esmagam o estipendio por mais aumentos salariais que haja.

Mas o Estado não pode desobrigar-se de garantir cuidados onde eles não existam por falta de mercado, seja por falta de clientes ou por excesso do custo da especialização dos cuidados necessários. O financiamento poderá seguir um modelo próximo do Holandês, com um estado supletivo por via de pagamentos de cuidados não cobertos ou pela manutenção de instituições públicas onde o setor privado não conseguir ou não quiser dar resposta.

O caminho da especialização do SNS nas áreas de prestação de serviços de saúde onde os privados, incluindo o social, não possam ou não queiram ir, é uma hipótese que eu defendo com grande convicção desde há muitos anos. O SNS pode e deve estabelecer cooperação e linhas divisórias com os outros setores sem que isso tenha de necessariamente corresponder a uma cedência e posterior dependência do setor privado. Basta que a própria sobrevivência financeira dos prestadores sociais e privados fique em grande parte dependente do pagador Estado.

E a melhor forma de garantir este efeito poderá ser através da generalização de um modelo da ADSE “like”, de forma obrigatória, a todos os trabalhadores do Estado e, facultativa, a trabalhadores assalariados de entidades não públicas e trabalhadores por conta própria. Trata-se de “oferecer” um seguro público, com prémio comportável para os “associados”, totalmente dedutível em sede de IRS e com coberturas mais vastas do que aquelas que agora são vendidas por seguros privados em Portugal e até pela atual ADSE. Este seguro público que não deve ser uma mutualidade, terá de ser gerido pelo ministério da saúde e remunerará os operadores com preços adequados aos custos dos serviços prestados.

É evidente que o Estado terá de continuar a assegurar, por contratualização aos preços do seguro público, a prestação de cuidados de saúde quando o setor público não os prestar, por decisão estratégica ou por falta de capacidade, mesmo àqueles que não sejam segurados, seja por desemprego ou por rendimento demasiado baixo, ou, alternativamente, assumir o pagamento de um prémio mínimo para todos os cidadãos que não possam pagar. É uma forma de contabilizar a despesa per capita e procurar um caminho em que o “dinheiro siga o doente”.

Mais uma vez, tudo dependerá de uma forte capacidade reguladora do Estado a ser exercida por uma agência dedicada a definir e verificar padrões de qualidade. O que quero dizer é que temos de migrar, progressiva e ordenadamente, para um sistema mais Bismarckiano, sem que isso ponha em risco os direitos consagrados na constituição. O que temos atualmente é uma farsa de Beveridge em que o SNS que todos pagamos não responde por falta de capacidade ou, como o povo diria, por “ter mais olhos do que barriga”.

Note-se que esta progressiva, necessária e inevitável intervenção do setor privado, como prestador para o SNS, não se deve confundir com a criação de mais parcerias público-privadas na saúde. Nada tenho contra elas, pelo contrário. Conheço os defeitos e virtudes do modelo e estou sempre a repetir que, sendo uma ferramenta cuja eficiência está muito dependente do racionamento imposto pelo contrato de gestão, a sua implementação resultou da capacidade de suporte de prejuízos que as empresas gestoras aguentaram até onde puderam. Novas PPP teriam de ser feitas com novos contratos. Todavia, tendo sido uma introdução de governo do Partido Socialista, as PPP podem ser uma boa ferramenta para a construção de novas unidades, talvez a única possível para que o Estado possa pagar ao longo do tempo, ou até para que o programa de modernização e manutenção estrutural de hospitais antigos seja concretizada. Outra reserva que interessa esclarecer é a ligação, quase umbilical, da prestação de cuidados primários populacionais às USF. Não tem de ser assim. Podem existir soluções em que médicos isolados ou em grupo possam prestar cuidados a indivíduos ou conjuntos de pessoas, retomando o conceito do médico assistente, sem terem de ser especialistas de medicina geral e familiar e sem estarem organizados em USF, sejam de modelo C, uma aberração da lei estatizante, ou outra coisa qualquer. O ótimo, se é que é ótimo, não pode ser inimigo do bom.

Os recursos humanos são a ferramenta mais importante da prestação de cuidados de saúde, erradamente a mais barata e, por ser mal paga, uma das grandes responsáveis para a ineficiência do sistema de saúde. Não há incentivos, para lá da ética e do brio profissional, para que faça melhor e com maior contributo para a sustentabilidade do sistema. Os recursos são escassos, mal distribuídos, nem sempre bem preparados e equipados para o que se lhes pede, e mal remunerados. Naturalmente, tendem a procurar emprego fora do SNS. Ora, uma das ideias que é recorrente passa por, no caso dos médicos, obrigar a pagar para sair do emprego público terminada a fase de formação. Poderia fazer-se o mesmo com enfermeiros e outras profissões em que o Estado é formador. Mas não seria desejável e, provavelmente impossível de aplicar. Por um lado, obrigaria à emigração antes do ingresso no primeiro emprego no Estado. Por outro, havendo já outros formadores e empregadores, levaria a que nenhum jovem profissional quisesse começar a sua “vida” por um emprego público. Mas inteligente e profícuo seria criar medidas de captação e manutenção de profissionais. Por exemplo, como já escrevi anteriormente, garantir progressões salariais automáticas ao fim de uns anos de trabalho ou dar um prémio de contrato no início, sujeito a devolução se um número de anos não for cumprido, e renovar esse prémio em sucessivos períodos de permanência.

Os reformadores

Chegados aqui, quem pode promover e concretizar a reforma?

Será necessário um governo:

  1. Pragmático, com vontade de procurar respostas simples e rápidas. Sem inventar muito, copiando o que de melhor se fez.
  2. Flexível, com capacidade de adaptação à evolução dos contextos e assumindo as correções no percurso.
  3. Ambicioso, com vontade de atingir metas de desenvolvimento sanitário que sejam relevantes e comparáveis.
  4. Generoso, para que não seja dominado pela vontade de poupar como se a poupança fosse um fim em si própria.
  5. Visionário, tendo capacidade de ver para lá do fim da legislatura e das eleições seguintes.
  6. Focado, comprometido com os objetivos traçados.
  7. Corajoso, de tal forma que, para lá de visionário, seja capaz de contrariar a opinião da maioria que nem sempre é a mais certa.
  8. Sério, não mentindo, não prometendo o impossível, dando exemplo de retidão.
  9. Confiável, porque além de ser sério tem de ser merecedor da confiança dos cidadãos.
  10. Paciente, sem ser tolerante com atrasos injustificados ou com pessoal incompetente

E um ministro, mais uma vez sem que não possa ser de sexo feminino, que, além das qualidades anteriores que todo o governo terá de ter, tenha humildade para reconhecer o que não sabe, oiça opiniões diversas, rodeie-se bem, estude os assuntos, vá ver o que se passa, apareça sem avisar, evite o espetáculo mediático, trabalhe mais do que passeie, renuncie a discursos inúteis em sessões de abertura e encerramento onde o governante vai sem ter nada de relevante para dizer, escreva os seus discursos, trate todos por igual, tenha capacidade de motivação, seja agregador, incansável, disponível, bem educado. Idealmente alguém com experiência de vida e profissional, não obrigatoriamente na saúde, preferencialmente com passado na administração pública, sem ter de ser um político de carreira – coisa em que o sistema britânico que eu admiro é mais estrito e onde, exatamente porque têm uma administração pública que dispensa o governo, só podem ter políticos eleitos como ministros. Não estou completamente certo de que seja melhor ser uma pessoa sem alguma experiência da “trituradora” governativa. Todavia, talvez possa ser, na fase em que estamos, alguém sem passado governativo, um clean slate como diriam os ingleses, um ingénuo que tenha grandes esperanças. O problema é encontrar quem esteja disposto a abdicar do seu conforto, da sua vida privada, da família e do que estiver a fazer com sucesso e satisfação. Pois é. Estão a pensar numa segunda versão do Dr. Paulo Macedo. Não me parece que esteja disponível.