Primeiro. A governação do País depende excessivamente do Governo. Deveria estar escorada na Administração Pública a quem o Governo daria as diretrizes políticas. Não é assim porque a nossa Administração, como já acontecia com o Estado Novo, está demasiado politizada e dependente dos Partidos. Era a União Nacional, foi a Ação Nacional Popular, agora são vários atores com a esquerda a controlar em permanência a quase totalidade das “bases” e os cargos de direção com tendência para oscilarem entre quem está no Governo. Isto resulta da necessidade de confiar nos nomeados e da dificuldade em encontrar quem esteja disposto a assumir esses cargos. Algum esforço de renovação, acabar com a “tradição”, tem limitações fortes, a maior das quais reside nos baixos salários que o Estado paga às direções intermédias e superiores. Não há como negar a evidência. Abrem-se concursos e não é raro que os concorrentes não sejam os mais indicados. Nem é certo que a CRESAP funcione da forma mais adequada. Além disso, sendo comum e expectável a excessiva politização dos dirigentes, os governantes desconfiam e preferem meter quem lhes possa ser mais leal.

Segundo. Com uma governação tão dependente do Governo, a fragilidade governativa transmite-se a toda a cadeia de comando. Pior quando, como acontece em Portugal, a Administração está dependente de filiações e/ou fidelidades partidárias. Com executivos de ciclos curtos, mais breve fica a vida do Diretores-Gerais e Presidentes, maior é a instabilidade das instituições, a descrença de quem lá trabalha nas chefias que se sabem ser provisórias, o que torna quase impossível a implementação da condução política da coisa pública. Pode-se renovar, deve-se renovar, mas quem aceitar “entrar” num cenário de instabilidade política e governativa sabe que pode estar num prazo curto. Logo, poderá tentar-se a não fazer nada e o mais comum é não se conseguir recrutar quadros para lá dos “fiéis”. O círculo vicioso da politização da Administração Pública acentua-se.

Terceiro. O atual Governo de Portugal, mais do que é habitual, está com um prazo de vida incerto e provavelmente curto. Não tendo um acordo político com outros partidos, tendo obrigatoriamente de navegar à vista de terra, quase sempre à bolina, com acordos de geometria variável, não consegue implementar uma ideia de sociedade e um modelo de governação e gestão do País. O Governo está sem tempo e já não o tinha no dia em que é empossado. Está sem tempo e sem parceiro, não interessa discutir agora porquê, mas convém ser justo e aceitar que não se vislumbra uma força política com quem a AD se pudesse conjugar. Talvez porque em Portugal se fala demais em “conquistar o poder” em vez de “assumir responsabilidades”. E há partidos com assento no hemiciclo de São Bento a quem falta quadros, coerência e ideias condutoras. Logo, não podem “assumir responsabilidades” e seria perigoso deixá-los “conquistar o poder”. Não é um problema de ideologia, é uma questão de não terem o que é necessário para poderem governar. É pena, mas por enquanto ainda é assim.

Quarto. O SNS português está entupido, como está a acontecer em outros serviços nacionais de saúde com modelo de financiamento Beveridgiano, de que o NHS do Reino Unido é paradigmático. Há dias, um amigo mandou-me uma notícia do The Daily Telegraph em que se afirmava que as listas de espera do NHS em Inglaterra poderiam demorar 685 anos(!) a serem corrigidas ao ritmo atual de resposta. A procura, também em Portugal, excede largamente a oferta possível que está aquém das necessidades em termos de recursos humanos, meios tecnológicos e de espaço e tempo utilizáveis para consultas, hospitais de dia, blocos operatórios e internamentos, de todas as tipologias e até se incluirmos a “novidade” dos internamentos domiciliários. Nestes, além do desvio de custos para o próprio doente e seu(s) cuidador(es) há necessidades imperativas de recursos humanos, disponibilidade de atendimento à distância e de capacidade para eventuais internamentos de urgência que, independentemente de se aplicarem a tipologias bem padronizada de doentes, não permitem a sua generalização até às quantidades desejáveis.

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Quinto. Não há o hábito dos partidos nacionais preparem a governação quando estão na oposição. Não há a prática de “governo sombra”. Os partidos da área democrática não são estruturas profissionais. São agrupamentos de pessoas com profissão que tiram parte do seu tempo para ajudarem na política e com prejuízo pessoal e financeiro. Assim é difícil. O “Plano de Emergência para a Saúde”, reiteradamente prometido na campanha eleitoral, não estava pensado e agora terá de atamancado em 30 dias, já nem são 60. Com tantos anos de oposição, não seria lógico ter apresentado logo, como fizeram com o IRS, os passos das medidas fundamentais a concretizar, calendário, e as peças jurídicas essenciais? Matérias de importância estruturante não se resolvem com comissões ad hoc, a funcionarem em tempo parcial e por favor, não remunerado, dos comissários. Tenho o gosto de conhecer pessoalmente a quase totalidade, se não a totalidade, dos membros da Comissão para o Plano de Emergência. São todos possuidores de competência e experiência comprovadas, de boa fé a toda a prova. Mas isso não chega. Para já não falar da nova messianização do Presidente da Comissão “O Médico Cirurgião que vai tentar salvar o SNS”.  Um perigoso peso de responsabilidade insustentável e irreal. Percebe-se a intenção destrutiva nas loas enunciadas. No fundo, o que precisaríamos de começar por saber é a abrangência do plano de emergência. Será para resolver pontualidades ou para promover reestruturação? Reforma? Impossível no tempo alocado e sem a preparação prévia devida.

Sexto. Tendo em mente os 5 pontos anteriores, não sendo possível, em seis meses ou nem mesmo em ano e meio, reformar o papel do Estado na garantia do direito à proteção da saúde, há coisas “pequenas” que podem ser já resolvidas. Por exemplo, melhorar os regimes de trabalho, remunerações e de registo de assiduidade dos trabalhadores do SNS, eliminar o absurdo das 18, em vez de 12h, de serviço médico semanal obrigatório de urgência, rever todo o sistema de contrações e “concursos” no SNS, acabar com juntas médicas e simplificar as verificações de baixas, eliminar a tortura permanente e consumidora de tempo que é a elaboração de relatórios médicos detalhados por tudo e para nada, reformular a prescrição eletrónica de medicamentos, devolvendo-a à sua simplicidade original, simplificar a acelerar os mecanismos de avaliação e possível introdução de tecnologias de saúde, mormente medicamentos, elencar onde estão os estrangulamentos nas cadeias de cuidados e procurar uma solução rápida pela contratação de serviços dentro e fora do SNS, o que implica rever as formas de cálculo de prioridades por risco clínico, desbloquear e iniciar a construção de estruturas vitais como o Hospital Oriental de Lisboa e o alargamento da capacidade física do IPO de Lisboa, etc., e o etc. é muitas outras coisas, de que agora não me lembro, mas que serão simples de resolver, haja vontade e bom senso. São coisas menores, na aparência, com um impacto grande na satisfação de trabalhadores e utentes. Percebo a relevância, mas anunciar um aeroporto para Alcochete para daqui a 10 anos parece-me menos importante e mais fácil do que melhorar o SNS.

Sétimo. Em simultâneo, ainda com os primeiros 5 pontos deste texto na cabeça, há que ajustar a organização da administração do SNS. O Governo atual foi apanhado – já sabia que seria assim – no meio de uma reorganização administrativa feita de forma intempestiva e mal planeada. A ideia é boa, a planificação foi medíocre e a implementação está a ser péssima. Para corrigir o que precisaria de ser corrigido e mudar o edifício de agências redundantes, mal estruturadas, com meios limitados e povoadas de quadros exíguos, seria preciso tempo e apoio parlamentar que o Dr. Montenegro não tem, mesmo que tivesse o tempo, engenho e empenhamento necessários para reformar o SNS. Sendo assim, deve, como tem sido anunciado, rever as funções e os normativos da Direção Executiva (DE-SNS) e da ACSS, ajustando alguns pontos no que às DGS, INSA e defuntas ARS diz respeito. Retoques que serão os remendos possíveis. Desde logo, assumindo o papel essencialmente de gestão financeira na ACSS e de gestão operacional na DE-SNS, conservando a gestão da qualidade na DE-SNS, remetendo as instalações e equipamentos para a ACSS onde estavam, devolvendo as relações internacionais e tudo o que tiver que ver com prevenção primária e secundária à DGS, passando o INSA para agência de investigação em saúde. Há mais uns articulados a ajustar. Tudo de lana caprina. Para lá das ARS, enterradas em vida e que já não podem ser exumadas, não haveria lugar a extinguir mais agências

Oitavo. Havendo tempo e algum dia ele terá de surgir, o Ministério da Saúde precisa de mais uma renovação administrativa. Assisti e colaborei nas PRACE e PREMACE. Ambas, por razões mais políticas do que racionais, ficaram aquém do que deveria ter sido feito. Ficaram-se pelo ajustamento do que havia, especialmente pelas pessoas e as suas conveniências, e não puderam construir uma nova realidade administrativa, mais moderna e mais capaz para responder às necessidades. Qualquer instrumento público deve resultar da necessidade de responder, em termos simplistas, ao seguinte: O que fazer? É preciso? Como fazer? Faz bem? Quem avalia? Quem controla? Quem premeia? Quem pune? Ou, se preferirem a visão da planificação estratégica em saúde, identificar problemas e necessidades, considerar os recursos necessários e existentes, saber como distribui-los no espaço e no tempo, elencar prioridades, programar, planear e implementar ações, avaliar resultados.

A minha proposta para responder às perguntas do parágrafo anterior passaria por um modelo mais simples, menos sobreposto e mais concentrado do que devem ser as agências do Ministério da Saúde, aqui descritas em termos funcionais gerais e sem ser exaustivo.

  • Secretaria-Geral do Ministério – Gestão interna do Ministério, relações-públicas e portal na internet, apoio administrativo, técnico, jurídico e de contencioso.
  • Direção Geral da Saúde – Autoridade de saúde pública, planos e programas de saúde pública, naturalmente absorvendo a área de comportamentos aditivos que é uma das áreas especiais de intervenção em saúde pública, acompanhar a execução da política nacional de saúde, relações internacionais.
  • Administração Central do Sistema de Saúde – Gestão financeira, de recursos humanos e de instalações e equipamentos, contratualizações de meios e serviços.
  • Direção Executiva do SNS – Gerir os fluxos de doentes e as redes assistenciais, coordenar o trânsito de todos os utentes através dos diferentes níveis de serviços, dos primários aos continuados, definir as carteiras de serviços e fazer a avaliação da qualidade, segurança e desempenho, prever necessidades em meios humanos e técnicos. Assegurar as linhas de atendimento aos utentes.
  • Inspeção Geral das Atividades em Saúde – Inspeção, fiscalização, auditoria, propondo a ação disciplinar.
  • Instituto Nacional de Saúde Pública – Laboratório de Saúde Pública, investigação em saúde, epidemiologia. Com tempo e planificação poderá ser integrado na Direção Geral da Saúde.
  • Serviços Partilhados do Ministério da Saúde – Informática e rede de comunicações do Ministério da Saúde, incluindo a trânsito de informação clínica e de gestão através de um processo clínico eletrónico único. Até se poderia integrar na ACSS.
  • Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento – Trata de medicamentos e dispositivos, avalia tecnologias de saúde, produz linhas de orientação clínica, regula o sangue e produtos de transplantação, porque o IPST não se pode regular a si próprio.
  • Instituto Português do Sangue e Transplantação – Colhe e promove a colheita de sangue, componentes e derivados, garante a qualidade, distribui, gere a rede de transplantação e o acesso a órgãos e tecidos.
  • Instituto Nacional de Emergência Médica – Rede de ambulâncias e helitransporte. O 115 para a saúde.
  • ULS e IPO – Prestam cuidados de saúde.

Se todas estas agências, cuja designação é indiferente, desenvolverem o seu trabalho de forma competente, complementar e não competitiva, até poderia ser possível eliminar, por inutilidade, uma das Secretarias de Estado do Ministério da Saúde. Algumas das agências que existem têm subsistido por necessidade de gerar postos de Diretor Geral ou de Presidente de IP, um pouco mais bem remunerados, para pessoas que dificilmente aceitariam ser Diretores de Serviços e atuarem sob uma chefia e coordenados por outros e com outros. Originalidades de um País que tarda em ganhar maturidade e não assume a sua pequenez territorial.

Nesta descrição não inclui a necessidade de integrar no Ministério da Saúde a futura agência gestora do seguro público de saúde, que agora já seria desejavelmente obrigatório e não voluntário, uma das formas de responder ao problema enunciado no quarto ponto. Mas isto seria REFORMA e não uma mera revisão administrativa.

Não inventei a roda, não escrevi nada de novo. Fica o contributo para que seja discutido, rebatido, melhorado. Ficar tudo como tem estado é que não nos serve.