Não está tudo esclarecido no confronto enérgico e dissimulado da esquerda contra o Alojamento Local (AL). Dois argumentos inclinam pessoas alegadamente sensatas a exigir o fim de uma actividade económica, como se viu agora com o pedido de um referendo em Lisboa, logo suportado pelos partidos do nosso atraso de vida. Um dos argumentos é compreensível, mas injusto. O outro não tem ponta por onde se lhe pegue. Ambos procuram justificar uma caridade a fingir.
“O Alojamento Local faz barulho e causa incómodo” às outras pessoas que vivem no mesmo prédio ou bairro. Um facto indesmentível, mas incompleto. O AL é tratado como único responsável de um estado de coisas recente e de cuja complexidade a esquerda não se quer ocupar. Os piores desacatos ligados ao AL acontecem nos bairros históricos do centro de Lisboa, castigados por problemas adicionais muitíssimo mais sérios. No Bairro Alto, por exemplo, onde já ninguém quer morar, nem sequer as empresas. Ou na Mouraria, junto ao Martim Moniz, arrastada ao debate público pelo responsável político da freguesia, e pelas piores razões.
São bairros de carga turística pesada, e de restaurantes, bares, vida nocturna, alguns completamente descontrolados, com os respectivos distúrbios, bebedeiras, lixo, consumo e tráfico de drogas, violência, agressões, e comportamentos chocantes. Os esforços aflitos da extrema-esquerda em matéria de moral não conseguem fazer os moradores engolir o espectáculo de criaturas dobradas sobre si próprias por efeito do fentanil; ou inconscientes nas entradas dos prédios com a seringa suspensa e a cabeça caída para trás na pedra dos degraus. “Evitemos os julgamentos morais estigmatizantes”, recomendava a deputada do Bloco de Esquerda que respondêssemos aos moradores quando se queixam de passar por cima destes obstáculos pela manhã, ao levar os filhos pequenos à escola.
Nalguns destes bairros, como a Mouraria, acrescente-se a enorme concentração de imigrantes, quase todos homens, quase todos em idade jovem, muitas vezes sem trabalho nem ocupação e a viver encavalitados às dezenas na mesma casa. Até por isso têm de passar o tempo na rua. Acrescente-se também a presença de máfias poderosas e violentas que mandam nos bairros, ligadas ao tráfico de drogas e ao tráfico de imigrantes, e a insegurança (real e percebida) que tudo isto produz. As pessoas mais velhas ou sozinhas passam medo dentro das suas próprias casas. Nada disto resulta do Alojamento Local. O argumento é injusto.
“O Alojamento Local rouba lugar à habitação”, ou “contribui para a falta de habitação”, ou “expulsa as pessoas da cidade e dos bairros históricos”. Não é verdade. Por várias razões, algumas na resposta ao primeiro argumento. Mas há mais. Nos bairros históricos do centro de Lisboa, 30% das casas tinham área igual ou inferior a 30 metros quadrados. São dados oficiais do Censos 2011, imediatamente antes da vaga de AL se alargar pela cidade e reabilitar a Lisboa dos prédios em ruína. Eram casas sem condições de higiene e segurança, muitas vezes sem casa de banho e com uma prumada única para descarga de todos os esgotos do prédio.
Era assim que as pessoas viviam, e só permaneciam naqueles bairros porque eram pobres. Essa circunstância, sim, era estigmatizante. Causava-lhes embaraço e um sentimento de inferioridade.
Já ninguém vive desta maneira em Lisboa. Nem deve voltar a viver, como aparentemente pretende a esquerda das petições e dos partidos. Convém prevenir que este seria o destino das famílias mais pobres caso a esquerda conseguisse fechar todo o Alojamento Local: casas com 30 metros quadrados, obviamente administradas pelo Estado, progressivamente sem verbas ou manutenção até chegarem ao pretendido estado de antigamente. Belezas misteriosas do progresso.
Por outro lado, todos os negócios “roubam lugar à habitação”. Não só o AL, mas também os hotéis, os advogados, as pequenas clínicas e consultórios, os contabilistas, as empresas de engenharia, de informática e toda a espécie de escritórios instalados onde houver uma construção. Até há pouco tempo, a Baixa de Lisboa tinha dois ou três consultórios médicos em cada prédio, as placas permanecem aparafusadas em muitas varandas. Era raro contruir-se prédios só para escritórios; hoje constroem-se demasiados, uma prática errada de política urbanística que atingiu o topo na Operação de Entrecampos, onde o ilustríssimo denunciante, ex-presidente e actual arguido Fernando Medina destinou 70% para comércio e escritórios e apenas 30% para habitação. Sintomaticamente, durante uma governação das esquerdas coligadas na Câmara de Lisboa. O segundo argumento é delirante.
Resta-nos compreender para que serve todo o fingimento: combater o capitalismo, levantar sarilhos a quem se atreve a viver longe da autoridade da esquerda. Bocadinho de existência em que a esquerda não manda, não é legítimo. De resto, note-se a leviandade com que se desprezam os empregos no Alojamento Local. Se fechar um teatro, um cinema, uma livraria onde já ninguém vai, ou um restaurante onde a “cultura” costumava jantar nos anos 80, arma-se um manifesto e duas petições por uma dúzia de empregados. Para mandar fechar o AL, já ninguém parece importar-se com a queda de milhares de pessoas no desemprego, sacudidas de um dia para o outro e sentadas na borda do passeio.