O Estado e as empresas que extraem petróleo e gás estão a ganhar muito dinheiro com a crise. O secretário geral da ONU, António Guterres, já disse que as empresas sofrem de uma “ganância grotesca” e apelou a que se aplicassem impostos, usando essas receitas para combater as desigualdades que a crise está a gerar. O Presidente da República não pediu impostos, mas apelou a essas empresas – que em Portugal são basicamente representadas pela Galp, na energia – que sejam mais generosas nos seus programas de responsabilidade social.

Como tem vindo a ser lembrado, há já vários países europeus que já avançaram para um agravamento de impostos sobre as empresas que extraem petróleo e gás, como são o caso da Grécia, Reino Unido e Espanha. França tem estado a tentar sem sucesso. E há países que já as têm há muito tempo, como o Canadá ou o Brasil, onde a taxa aumenta automaticamente com a subida dos preços, dando previsibilidade às empresas (ver aqui).

A questão central é: quem deve ficar com este dinheiro que vem de lucros inesperados, gerados pela saída de um grande produtor do mercado, a Rússia, por causa da guerra? Temos os lucros das empresas, mas também as receitas fiscais adicionais dos Estados, designadamente através do IVA.

No caso dos Estados não tem existido qualquer debate, exceção feita, pelo menos em Portugal, de alguns partidos da oposição. Face à conjuntura muito instável e à perspetiva de uma crise, parece sensato deixar que esse dinheiro fique nos cofres do Estado. No caso português essa “receita fiscal caída do céu” pode perfeitamente ser aproveitada, quer para acelerar a redução da dívida, quer para ser parcialmente usada para apoiar as famílias de mais baixos rendimentos que mais estão a sofrer com esta crise.

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No caso das empresas, se nada se fizer corre-se o risco de as ver a distribuir esse dinheiro pelos accionistas e essa não parece ser a aplicação que melhor serve os interesses da sociedade e mesmo das companhias, que dizem e devem prosseguir objectivos ambientais, sociais e de governação (ESG). Ficar-se pelo apelo do Presidente da República – reforcem a componente de responsabilidade social – pode ser pouco. Taxar pura e simplesmente, com o dinheiro a entrar para os cofres do Estado, usando-o para o combate às desigualdades, como pede o secretário-geral da ONU, pode ser melhor, mas é igualmente curto.

Para os economistas, a melhor solução passa sempre pela previsibilidade: definir um valor a partir do qual se agrava a taxa, introduzindo uma espécie de progressividade também no IRC. Nesta conjuntura, uma solução pode ser criar um mecanismo, através da tributação, que incentive as empresas a investirem estes seus lucros caídos do céu numa mais rápida transição energética e em projetos que combatam a desigualdade conjuntural – gerada pela inflação – e a estrutural – gerada pela falta de formação e educação. Empresas como a Galp, por exemplo, têm condições para criar uma espécie de “bolsas de energia” com descontos para as famílias mais vulneráveis. E devem acelerar os seus investimentos de transição energética. Tudo medidas que são positivas, quer para a empresa, como para a comunidade em que se insere. O que deve ser evitado e até castigado, em termos de impostos, é a distribuição de dividendos ou a compra de acções próprias, especialmente em empresas que têm tanto para fazer na redução da sua pegada carbónica e no seu envolvimento com a comunidade.

O que os governos não devem fazer é deixar a possibilidade de taxar os lucros excessivos sempre no ar, sem nada clarificarem, dando a ideia de que querem usar essa hipótese como ferramenta de ameaça às empresas, se elas não seguirem as suas opiniões. Esperemos que não seja isso que o Governo português está a fazer.

E assim entramos no segundo tema, no medo que se pode estar a instalar de clarificar políticas ou medidas que o Governo deseja que estejam envoltas em neblina. Um exemplo disso é a violência com que o primeiro-ministro reagiu às declarações do presidente da Endesa Portugal Nuno Ribeiro da Silva, colocando o secretário de Estado João Galamba a conferir facturas e ameaçando implicitamente a empresa espanhola de ficar sem contratos do Estado.

O Governo sabe bem que o mecanismo ibérico de fixação do preço do gás na produção de eletricidade cria um défice que tem de ser pago às termoelétricas. Como a Comissão Europeia não deixou que esse défice se acumulasse como dívida – como aconteceu no caso do défice tarifário com José Sócrates – essa diferença é distribuída pelos consumidores de energia do mercado livre de cada vez que os seus contratos são renovados. O Governo sabe isso e quer o ministro do Ambiente como o secretário de Estado explicaram o processo, logo no início, embora numa linguagem relativamente fechada.

O que aparentemente o Governo esperava é que esse teto no preço do gás provocasse uma descida mais significativa do preço de mercado da eletricidade, que moderasse a subida da redistribuição do défice das termoelétricas. Mas isso não aconteceu – o peso do gás na produção de electricidade é elevado por via da seca, da falta de vento e do encerramento das centrais a carvão. É este quadro que tem sido explicado pelos especialistas para o facto de a medida ter, pelo menos nesta fase, um efeito menos significativo do que o esperado.

Ou seja, o Governo sabe que Nuno Ribeiro da Silva tinha razão no que disse. O erro do presidente da Endesa foi não ter explicado de forma mais detalhada o seu raciocínio e, principalmente, o que queriam dizer aqueles 40%. Mas se as empresas não se reprimirem de mostrar nas facturas os efeitos do mecanismo ibérico para os preços do gás, ver-se-á – como já se viu, por exemplo, numa reportagem da RTP – que há um custo que vai ser distribuído, como o Governo diz, por quem beneficia desse limite.

A violência do ataque do primeiro-ministro impediu que se percebesse o que quer que fosse. O medo das empresas, de que o Governo retaliasse, pôs todos caladinhos. Não querem estar na pele da Endesa e ter o secretário de Estado a conferir facturas, com o mais do que provável atraso nos pagamentos. O primeiro-ministro, embora referindo-se apenas à Endesa, disse que o seu despacho foi “preventivo”. A mensagem está dada e percebida, especialmente nas empresas que têm sobre si a possibilidade de criação da taxa sobre lucros caídos do céu e que têm muitos investimentos a dependerem da bênção do Governo para serem financiados por fundos europeus.

Em nada ajudou a intervenção do Presidente da República que, repetindo as palavras do Governo, apelou a que não se fizessem declarações “alarmistas e especulativas”. Na defesa de valores e princípios, o Presidente não podia nem devia apoiar este tipo de actuação do Governo dirigida a uma empresa, em vez de fazer uso das instituições como a Autoridade da Concorrência e a ERSE. Do ponto de vista económico, a Endesa está a ser discriminada com base numa opinião do seu presidente que desagradou ao Governo, tomando medidas por “suspeitas” de práticas especulativas.

Podemos considerar, irritados com as empresas de energia, que merecem, andam a ganhar muito dinheiro. Mas violar as regras básicas da democracia nunca é um bom princípio. Hoje são estes, amanhã aqueles, vamos achando bem, até que chega à nossa vez. E aí já pode ser tarde. As democracias têm instituições.

Além disso, parece que todos os governantes estão apostados em infantilizar os portugueses, transformando Portugal numa espécie de paraíso onde os efeitos da guerra não chegam, em que não é preciso fazer nada para nos protegermos. A declaração do ministro do Ambiente na entrevista à CNN Portugal é mais um reflexo dessa tentativa de infantilização. Diz Duarte Cordeiro que Portugal até já poupou mais gás do que a União Europeia. Como? Excluindo o que se gasta para produzir electricidade, diz o ministro, Portugal já gasta menos 22% de gás, redução que resulta do efeito da subida do preço. E os consumidores dos outros países, também não reduziram o seu consumo reagindo à subida do preço? E poupamos onde? As empresas, algumas entraram até já em lay off, e isso pode ter efeito, embora indesejado e recessivo. Porque de resto as famílias usam o gás fundamentalmente para cozinhar e aquecer as águas. E não é desta poupança que, seguramente, se está a falar naquilo que foi aprovado pelos ministros em Bruxelas.

A leveza com que o Governo está a tratar o problema da energia – porque é preciso não “alarmar as pessoas” – é bem visível na ausência de um plano para poupar energia e até para poupar água. O Governo só começou a falar de um plano para poupar energia quando os jornalistas o começaram a questionar, confrontados com as medidas que estão a ser adotadas nos outros países. É hoje difícil abrir um jornal espanhol sem que, logo nas páginas online de abertura, estejam anunciadas medidas e iniciativas do Governo de Madrid para poupar energia. Se sermos uma ilha ibérica energética permitiu que tivéssemos um teto para o preço do gás, Portugal parece uma ilha dentro da ilha ibérica.

A infantilização dos portugueses, criando até constrangimentos no discurso público, com medo das vinganças do Governo, em nada contribui para o desenvolvimento. Como em nada contribui para nos preparamos para os tempos difíceis que parecem estar a chegar. Não é alarmismo, é realidade.

P.S. – Estarei de regresso a 6 de Setembro. Boas férias.