Ao terminar o seu discurso, diz-se que Catão sacudiu as dobras da sua toga e deixou cair alguns figos líbios no chão do Senado. E, enquanto os Senadores admiravam o seu tamanho e frescura, Catão referiu que o país que os produzia distava de Roma apenas 3 dias de barco. A partir daí, Catão concluía todas as intervenções com as palavras: «E, além disso, é a minha opinião que Cartago deve ser destruída»”. (Plutarco, Vidas Paralelas: Aristides / Catão, o censor).

A sorte de Catão – e o azar de Cartago – é que os trabalhos do Senado Romano não eram dirigidos por Augusto Santos Silva. Se fossem, o patrício romano teria sido prontamente admoestado, a sua diatribe contra Cartago interrompida e talvez a cidade do Norte de África se tivesse safado.

É que, na passada quarta-feira, na discussão do Orçamento do Estado, depois de a deputada Inês Sousa Real ter interpelado o Primeiro-Ministro sobre o aumento do custo de vida, exibindo as frutas e legumes que subiram de preço, o Presidente da Assembleia da República repreendeu-a com a sua habitual indelicadeza sarcástica: “A senhora deputada sabe que a linguagem se inventou para podermos falar das coisas sem ter necessariamente de mostrar as coisas?” Afinal, parece que Santos Silva não é apenas o polícia do discurso de ódio, também fiscaliza o discurso de horto.

A atitude de Santos Silva é bizarra. Não é bizarro o facto de ASS achar que um Parlamento não é local para a exposição de produtos hortícolas para efeito retórico, desconhecendo, por exemplo, o acontecimento narrado por Plutarco. Santos Silva é considerado intelectual, mas a verdade é que isto é a política portuguesa, em que basta usar óculos, mastigar de boca fechada e não dizer “qualqueres” para se ser conhecido como pensador. Não é obrigatório ter conhecimentos sobre a história da República Romana. Aliás, só descobri este episódio porque me chamaram a atenção. (Obrigado, Dr. Miguel, pelo rico auxílio.)

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A bizarria é a desvalorização da ajuda visual como complemento à palavra, vindo de alguém que, ao longo dos anos, tem demonstrado dificuldades agudas em perceber certas subtilezas da linguagem, quando as palavras não são acompanhadas por um desenho.

Ainda esta semana, em entrevista à CNN, Santos Silva referiu-se assim às acusações que pendem sobre o seu ex-chefe José Sócrates: “E quanto às questões a que quer aludir, elas estão em justiça. Deixemos a justiça tratar. Porque eu também sou uma das pessoas que gostará de saber o que é que realmente se passou”.

Portanto, depois de tudo o que já se soube sobre a riqueza de Sócrates, alguém que o viu em acção continua com dúvidas sobre o “o que é que realmente se passou”. Ou seja, quando Santos Silva lê que Sócrates pedia que lhe entregassem “dossiers”, “livros”, “fotocópias”, “aquela coisa que eu gosto” ou “folhas”, acredita que o ex-PM estava mesmo a pedir que lhe entregassem dossiers, livros, fotocópias, uma coisa qualquer de que ele gostava e folhas. E não, como toda a gente sabe, a exigir dinheiro.

Sabe o Sr. Presidente da Assembleia da República que a linguagem também se inventou para podermos falar das coisas sem ter necessariamente de nomear as coisas? Sobretudo, quando pretendemos evitar que a polícia perceba que as coisas de que estamos a falar foram obtidas como forma de pagamento de favores ilicitamente prestados.

Quando ASS diz que gostará de saber o que realmente se passou, alguém que tenha a bondade de o informar que passou-se dinheiro de vários empresários para um Primeiro-Ministro.

Pode uma pessoa com esta incapacidade de imaginação dar-se ao luxo de prescindir de cábulas como as que a deputada do PAN tirou da sacola de compras? Não creio. Augusto Santos Silva necessita de todo o apoio possível para o ajudar a perceber a realidade. Para compreender que a laranja de que Sousa Real fala é mesmo uma laranja e não uma “laranja”.

É por isso que a crítica de Santos Silva a Inês Sousa Real não faz sentido. A deputada não trouxe adereços a mais, trouxe adereços a menos. Quantos mais, melhor. Se Sócrates ia de férias para resorts de luxo, vestia fatos de luxo, comprava obras de arte luxuosas, usava relógios de luxo, e isso não chegou para Santos Silva desconfiar que havia marosca, cheira-me que também ia ter dificuldade em perceber o argumento da deputada do PAN se ela não trouxesse o Mercado da Ribeira ao plenário.

A verdade é que Santos Silva continua um grande admirador do Primeiro-Ministro que recebeu milhões de euros por mercadejar o seu cargo. Diz ASS: “Há uma avaliação política do primeiro governo de Sócrates, que eu acho que foi um dos governos mais reformistas que o país teve”. E tem razão. Não há dúvida que, se há herança do socratismo, é a das reformas que deixou. Designadamente, da sua própria reforma. Segundo as últimas estimativas, é um PPR com algumas dezenas de milhões.

Está visto que Santos Silva vai ser o Presidente da República que terá a honra de finalmente condecorar o pensionista José Sócrates. Nesse dia, em honra de Inês Sousa Real, talvez alguns espectadores compareçam à cerimónia com fruta, mas da podre.