Tinha ao mesmo tempo um ar cândido, mas duro e perdido.

Olhei-a com atenção e, sendo eu distraído, lembrava-me no entanto pelo porte, pela altura, pelo delicado desenho das feições, uma cariátide daquelas de Atenas. No entanto estava a limpar a casa de um amigo como simples mulher a dias enquanto eu esperava que ele chegasse.

Perguntei-lhe o nome e de onde vinha. Esboçou um sorriso triste enquanto me olhou nos olhos e disse num português perfeito com uma entoação ligeiramente surda, notando-se que era estrangeira:

– Chamo-me Alena e vim de Mariupol.

Fiquei um pouco sem saber o que responder com aquele sentimento de quem tropeça num aleijado e fica numa atrapalhação a que lhe faltam a atitude e as palavras. Felizmente nessa altura o meu amigo chegou, cumprimentou-me e disse-me alegremente:

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– Já conheceu a minha bela Helena! Uma mulher extraordinária! Uma história espantosa!

Então num desenrolar de palavras, contadas pelos dois, uma certa aventura de humanidade, quase uma mitologia mas perturbantemente real , foi-me desvendada.

Mariupol foi palco de um ataque e conquista russa nos tempos próximos, amplamente documentados pelos media. Pelos tratados internacionais é, contudo, território da Ucrânia. Mas isso é hoje. Como foi ontem?

A bacia do Mar Negro, onde Mariupol se situa, mais precisamente no Mar de Azov, nos mapas a Oriente de Odessa, situa-se perto da origem da colonização grega naquela parte o mundo. A cidade de Ólbia, nascida por volta do sec VII AC desaparecida desde o séc. III (mil anos de vida!), funcionou durante séculos como entreposto comercial e polo de irradiação da cultura grega. Foi invadida por povos vários, destruída, reconstruída até que, já nos séculos XIX e XX foi investigada por gerações de arqueólogos russos. Várias outras colónias entre as quais uma de menor importância, Odessos, existiram, a tal ponto que por vontade de Catarina a Grande da Rússia, e considerando-se herdeira da cultura bizantina/grega entendeu dar o nome, feminino, de Odessa à cidade que aqui nasceu. Mariupol, por seu lado, nome grego que significa cidade de Maria, foi criada, também por Catarina, para albergar gregos fugidos da Crimeia atacada e brevemente conquistada por Turcos.

Mariupol é assim, de raiz, uma cidade grega, povoada por gregos.

E gera-se, também por isso, um dos mitos fundadores do Império Russo, que se sente herdeiro do Império Romano do Oriente dele absorvendo cultura, título do seu soberano, religião e considerando-se protector dos gregos. Império também grego, de certa maneira.

E esta soma de contos agregados traz-nos de volta a Alena que me contou de Mariupol e dos seus sentimentos.

Em primeiro lugar entende que a sua origem é grega. Até ao início da guerra, se bem que ucraniana de passaporte, considerava-se russa e achava Putin um digno herdeiro e representante da tradição imperial.

Quando um míssil russo lhe entrou pela sua casa dentro volatilizando-a, perdeu a confiança nos russos, não ganhando por isso sentimento parecido para com os ucranianos de Zelensky. Pareceu-me que, agora, odiava ambos.

Fugiu para Portugal levada pelo conhecimento de uma comunidade de outros vindos daquelas paragens e que aqui se foram habituando.

É evidente que a violência de uma história destas deixa marcas profundas, mas também discernimento. E Alena contou-me a sua conclusão:

“Sabe, senhor, vocês aqui em Portugal estão como nós estávamos, num sítio donde ninguém falava.

Tínhamos, independentemente dos regimes que nos governaram com mais ou menos brutalidade, uma certa ordem de vida. Os nossos governos foram as mais das vezes absolutos, mas não deve ser esquecido que os russos todos, nós inclusive e os nossos brutais vizinhos, os cossacos, tratávamos o Czar por “paizinho”. Dada a enormidade do Império, cada comunidade, se é que se pode chamar assim, tinha os seus próprios costumes e maneiras de ser que, desde que não interferissem com a governação, eram tolerados. Chegávamos às vezes a ser felizes. Não fomos, no entanto, o que vocês também, agora pelo menos, não são, pelo que eu sinto e vejo, uma comunidade unida, em que o bem comum é como que uma transcendência. De certa maneira é cada um por si e não vejo um sentimento de agregação, de comunidade. Como no comunismo que eu vivi, varrida a espiritualidade pela natureza materialista do regime, a ideia da satisfação das aspirações físicas de cada um predominava: o trabalho, a saúde, a educação são valores inquestionáveis, mas ignoram um dado: a natureza humana que implica a vontade de ter poder e exercê-lo, a inveja, o ciúme, a ganância, a própria maldade. Ora os regimes aguentam-se por uma vontade comum é verdade, mas também pela sua ausência.

Não sei como é em outros Países. Vocês aqui votam, mas não vos vejo unidos, não vos vejo a discutir o bem comum, no que isso significa de ceder, dar e receber.

Hoje parecem livres. Mas pelo que vivi parece-me que amanhã será diferente, e tenho pena.”