Adelino Amaro da Costa, se fosse vivo, teria 77 anos. Se não tivesse sido aquela tragédia do Cessna, é normalíssimo pensarmos que, hoje, estaria bem, ainda em grande forma. Era pessoa de excelente saúde, física e mental. Não me recordo de o ver com problemas ou preocupações físicas de qualquer ordem, honrava com brilho e distinção a bonomia dos gordos e tinha invejável fortaleza moral e psicológica. Não havia abalo que o abalasse.
Nasceu em Algés, em 18 de Abril de 1943, na parte final da 2.ª Guerra Mundial. Tinha as raízes familiares em Odemira, concretamente em Relíquias (a mãe) e em São Martinho das Amoreiras (o pai). Morreu em Camarate, em 4 de Dezembro de 1980, na queda provocada de um pequeno avião, que acredito ter sido um atentado contra ele.
Em 1983, fui surpreendido por uma descoberta que me martelou. Eu era membro da Assembleia Municipal de Odemira, eleito numa lista da Aliança Democrática (coligação PSD/CDS/PPM) com muitos outros, entre os quais o pai do Adelino, o respeitadíssimo Eng.º Manuel Rafael Amaro da Costa, grande engenheiro, a quem muito deve Portugal, em especial a Madeira e o Alentejo. Uns amigos tinham retomado a publicação mensal do jornal “O Odemirense”, onde fazíamos oposição à Câmara, liderada pelo PCP. Fartava-me de escrever para lá. E, para aligeirar, ocupei-me também de investigar a História de Odemira, publicando pequenas crónicas.
Alguém me disse que o Almirante genovês chamado pelo nosso rei D. Dinis para fundar a marinha em Portugal tivera autoridade em Odemira. Fui ver. Era verdade. Confirmei na “História de Portugal” de Veríssimo Serrão, no 1.º volume, que cobre o período de 1080 a 1415. O Almirante Manuel Pessanha (Pesagno, de apelido original) recebeu de D. Dinis, como prémio, direitos sobre várias terras: reguengos de Frielas, Unhos, Sacavém e Camarate, reguengo de Algés, castelo e vila de Odemira.
Quando li isto, foi como se levasse uma estalada. Não sendo dado a confabulações cabalísticas, o destino de Adelino Amaro da Costa cruzava-se com o mapa do Almirante Pessanha: o Adelino fez tropa na Marinha, na Reserva Naval, onde conheceu Freitas do Amaral; era odemirense dos quatro costados; nasceu em Algés; morreu em Camarate. Coincidências.
1 O pré-fundador do CDS, o primeiro de muitas funções
Desse encontro marinheiro com Freitas do Amaral nasceu uma amizade para a vida, uma relação pessoal e política como raramente se viu. Provavelmente não teria existido CDS, se não tivesse havido aquele encontro que cruzou os caminhos dos dois principais fundadores.
O CDS, Partido do Centro Democrático Social, surgiu quase três meses depois do 25 de Abril: em 19 de Julho de 1974. Para um grupo de pessoas não previamente organizado, foi uma grande proeza, sem dúvida, conseguir fazê-lo em tão pouco tempo. Mas representou, ainda assim, um atraso significativo relativamente àquele que seria o seu principal concorrente, rival e aliado: o PPD, apresentado logo em Maio, que era sequência da “Ala Liberal” de 1969/73.
Adelino Amaro da Costa, que gostava muito de escrever para a imprensa, fez de S. João Baptista do CDS, em três artigos consecutivos, textos históricos, publicados em 26 de Junho, 1 de Julho e 19 de Julho de 1974: “Democracia pluralista – objectivo das Forças Armadas” (Diário Popular), “Centrismo: uma política de acção” (O Século) e “Governar, na democracia” (Diário Popular). Relendo-os, depois, percebe-se que foram artigos de anúncio do CDS, cujo nome nunca foi dito, apenas publicando uma nova visão do país e da política
O último artigo, publicado na tarde do dia em que o CDS foi apresentado, faz-nos pensar que quem o leu teria ouvido pela rádio o aparecimento do CDS. E teve no jornal um explicador complementar, que discorria (o Adelino) sobre «o Governo, antes», «o Governo, agora» e «o Governo, depois»; e, aqui chegado, difundia o seu pensamento sobre «as ideologias históricas», questionava os partidos existentes – que todos seguiam modos de pensamento socialista – e, olhando à evolução da realidade da Europa e do mundo, propunha a nova plataforma: o centrismo.
Enunciou: «Uma base doutrinária mais ampla – de raiz acentuadamente personalista – e, por isso, bem mais rica e complexa, passou a fecundar e a legitimar os programas políticos, em contraste com situações anteriores, sobretudo na Europa continental.»
A seguir, explicava: «O centrismo que não recusa entrar em processo dialéctico com a ideologia – antes o defendendo como meio de vitalização política; o centrismo que não é ideologia, mas uma plataforma aberta às ideologias que rejeitam qualquer forma de transpersonalismo; o centrismo que é vocação de governo em função harmónica dos fins a alcançar pela sociedade; o centrismo que não se condiciona por uma receita dogmática ou paradogmática no plano dos meios a utilizar com vista à realização daqueles objectivos – tal é o nome comum que pode ser dado às várias expressões políticas que governam a Europa democrática ocidental.»
E, concluía: «Esse centrismo que é, enfim, um contraste fecundo e colaborante entre o centro-direita e o centro-esquerda, onde está, em Portugal? Quem o interpreta? Quem o propõe como atitude fundamental de governo? Eis um enorme espaço político que, apesar de tudo, corria vago, em termos de instituições partidárias, com genuína expressão popular. Sem ambiguidades, com clareza, urge preenchê-lo.»
Quem o vinha preencher? Obviamente, o Partido do Centro Democrático Social, que ele mesmo, Amaro da Costa, junto com Freitas do Amaral e mais três fundadores, apresentou nesse dia, já na sede do Largo do Caldas (hoje, com o seu nome: Largo Adelino Amaro da Costa).
Nesses anos do princípio do CDS, especulou-se algumas vezes sobre quem escrevera a Declaração de Princípios do partido. Apontavam-se alguns autores possíveis, mas o segredo nunca foi quebrado. Nunca ouvi o Adelino reclamar a autoria para si. Naquele partido, fundado – como costumo dizer – “em torno de uma escritura” (em vez de atrás de alguém), o anonimato absoluto da autoria fazia parte dessa função. Se não, poderia vulgarizar-se como mais um texto de alguém; não um texto colectivo fundador e, como tal, inspirador e venerado.
Quem quebrou esse segredo foi Diogo Freitas do Amaral, num discurso emocionado feito na primeira homenagem do CDS logo a seguir à morte em Camarate. Começa assim:
«Adelino Amaro da Costa foi fundador do CDS. Foi quem redigiu a nossa Declaração de Princípios. Foi o primeiro porta-voz da direcção do Partido. Foi o nosso primeiro Secetário-Geral. Foi o primeiro Vice-Presidente do CDS. Foi o primeiro Presidente do nosso Grupo Parlamentar na Assembleia da República. Foi o primeiro Deputado do CDS a receber o título de melhor parlamentar do ano. Foi o principal redactor dos textos oficiais emitidos pelo Conselho Nacional, pela Comissão Política e pela direcção do CDS. Foi o fundador do IDL. Foi o principal estratega da AD. Foi o primeiro civil a exercer as funções de Ministro da Defesa Nacional depois do 25 de Abril. Quis o destino que fosse ele também o primeiro, de entre nós a partir para sempre.»
Viajando de novo até à Declaração de Princípios do CDS, divulgada em 19 de Julho de 1974, não é difícil perceber, ali, as respostas ao diálogo que se desvenda nos três artigos anunciadores e, em especial, à bateria de perguntas do último texto de Amaro da Costa no «Diário Popular”.
O CDS apresentou-se assim oficialmente:
«(…) este partido saúda as várias organizações partidárias ou cívicas já lançadas, manifestando-se disposto a um diálogo fecundo com todas elas, e declara-se aberto à desejável colaboração com as que, sinceramente identificadas com o 25 de Abril, se proponham construir para Portugal um futuro de paz, liberdade e democracia social, no âmbito da plataforma centrista.» E prosseguiu em cinco pontos capitais:
- «O C.D.S. representa, em primeiro lugar, os portugueses que estão dispostos a lutar pela consagração, em Portugal, do humanismo personalista, sustentando a necessidade imperiosa de se concretizarem, na nossa vida colectiva, as exigências do progresso, em todas as suas formas. (…)
- O C.D.S. representa, simultaneamente, todos os portugueses que desejam para o nosso Pais um sistema democrático de vida capaz de conduzir à redução acelerada das desigualdades sociais existentes, a um rápido progresso económico e social e a uma ampla e efectiva participação de cada um nas diferentes manifestações da nossa vida colectiva. (…)
- O C.D.S. representa, também, todos os portugueses que defendem uma nova concepção da iniciativa privada, com base no aprofundamento da solidariedade nacional e da fraternidade social. (…)
- O C.D.S. representa, também, todos os portugueses que desejem construir, na dignidade, a paz dos territórios africanos e, na cooperação, uma nova posição de Portugal no Mundo. (…)
- o C.D.S. afirma a sua adesão ao carácter personalista do 25 de Abril.»
É sem dúvida o espírito e a mão de Adelino Amaro da Costa, como aconteceu tantas vezes na vida do CDS e da Aliança Democrática (a AD). Um texto muito amadurecido e revisto com outros, ao longo de dias, nomeadamente com Freitas do Amaral, até se estabilizar como a Declaração instituidora, subscrita pelas quatro dezenas de fundadores.
2 O mais à direita. E a travessia do PREC fora da carruagem
A circunstância sonhada para o desenvolvimento do CDS – a que existia quando surgiu – esfumou-se rapidamente com o tropel da revolução. Nessa altura, com excepção do PCP, não havia propriamente partidos políticos, mas a intenção de partidos. E todos, incluindo o PCP, careciam de legalização junto do Supremo Tribunal de Justiça. Tinham surgido, nesses primeiros meses a seguir ao 25 de Abril, alguns partidos que se situavam à direita do CDS: o MPP (Movimento Popular Português), o PDC (Partido da Democracia Cristã), o PSDC (Partido Social-Democrata Cristão), o PL (Partido Liberal) e o PP (Partido do Progresso).
Logo no rescaldo do 28 de Setembro, o MFA ilegalizou o Partido do Progresso e o Partido Liberal, ao mesmo tempo que MPP e PSDC se esfumaram, por falta de condições. E, no 11 de Março, foi a vez de o PDC, com quem o CDS tinha uma coligação pré-eleitoral, ser suspenso.
Isto fez com que o CDS, em apenas sete meses, visse completamente alterada a sua circunstância fundadora: de partido do centro passou a ser o partido mais à direita. Era a posição pouco invejável de ser o pára-choques do regime, enfrentando a dinâmica de salamização, característica das ditaduras chamadas “democracias populares”.
O CDS estava destinado a ser a fatia seguinte do salame a ser cortada pelo esquerdismo infrene, na próxima oportunidade turbulenta da revolução. Ainda por cima, o CDS estava fora da carruagem oficial na travessia do PREC: não era um dos três partidos dos Governos Provisórios, não beneficiando desse perímetro protector.
O CDS provou-o em comícios boicotados, no Congresso cercado e interrompido, na prisão de alguns dirigentes e militantes, em dois assaltos à sede nacional, que foi vandalizada (4 de Novembro de 1974 e 11 de Março de 1975). Nada disto tinha a ver com a imaginada placidez centrista e exigia dos dirigentes e militantes que ficaram, juntaram-se e se levantaram, grande capacidade de luta e de resistência sem deixar derrapar o pensamento.
Diogo Freitas do Amaral e Adelino Amaro da Costa estiveram lá sempre. E, ainda que Freitas lamentasse intelectualmente, anos mais tarde, a alteração das circunstâncias que impediu o desabrochar do seu projecto de partido centrista – “rigorosamente ao centro” –, nenhum vacilou. Não havia, aliás, tempo sequer para pensar nisso. Era andar: andar, andar, andar.
As qualidades pessoais do Adelino sobressaíram: a alegria, o optimismo, o seu modo brincalhão, o ânimo, a extroversão, a exuberância; e, na Constituinte, primeiro palco parlamentar, a imaginação, o fulgor da palavra, o prazer do debate, a capacidade de enfrentar, o jeito e o gosto do diálogo.
3 Oposição e alternativa
É pelo instinto de Amaro da Costa que, logo a seguir ao 11 de Março, o CDS se proclama da oposição. Não estava previsto. Todo o desenho estratégico, vindo da lógica dos livros, era o de deixar isso para a fase constitucional do regime e não para o tempo dos Governos Provisórios e do PREC a acelerar.
Houve o instinto dessa ousadia, no rescaldo imediato das nacionalizações, condenando-as. E, a partir das eleições constituintes, com 16 deputados em S. Bento, o CDS sentiu que tinha condições para esse exercício alternativo de oposição, parlamentar e extraparlamentar, exprimindo o olhar e a voz do único partido não-socialista da situação.
Havia, porém, as amarras apertadas do 1.º Pacto MFA/Partidos que todos tiveram de assinar, para garantir a realização das eleições constituintes. Aí, o talento de Amaro da Costa fez prodígios de linguagem para poder assinar o texto sem mentir ao coração, o que se tornou uma especialidade do CDS para poder acompanhar a revolução sem se confundir com ela, nem por ela ser tragado. Éramos a favor de uma “sociedade sem classes”, mas sendo todos proprietários, não todos proletários – utopia por utopia, antes a boa do que a miserável. Estávamos na “via original para um socialismo português”, porque, se era “original”, não era nenhuma das vias horrorosas que já se conheciam (soviética, chinesa, cubana, vietnamita, coreana) e, se era um “socialismo português”, era outra coisa que teria de se ver. O CDS ia no comboio, mas a reclamar e a objectar.
Era preciso ir tão longe quanto necessário, até ao momento decisivo. No dia 21 de Novembro de 1975, Amaro da Costa faz um discurso vigoroso na Assembleia Constituinte, perante o facto de o Governo Pinheiro de Azevedo ter declarado entrar em greve, uma originalidade da revolução socialista em que patinávamos. Às tantas, interpela: «O Governo decidiu suspender as suas actividades porque não tinha garantias para governar. Pode discutir-se o método adoptado pelo Governo; não se pode discutir a intenção. O Governo pretende ser respeitado; é justa a sua pretensão. O Governo exige do Presidente da República e do Conselho da Revolução a autoridade que lhe falta; é legítima a sua exigência. O VI Governo tem dúvidas sobre a determinação do Conselho da Revolução em o apoiar? Obrigue, como obrigou o Conselho da Revolução a definir-se. Chegou a hora da clarificação. Os portugueses não podem continuar a viver em estado de crise permanente. É preciso saber, de uma vez por todas, quem está pela democracia e quem está contra a democracia.»
Quatro dias depois, era o 25 de Novembro.
E, a 10 de Dezembro, lá estava de novo Amaro da Costa, no plenário de S. Bento, a reclamar em nome do CDS a necessária revisão da «Plataforma de Acordo Constitucional celebrada entre o MFA e alguns partidos políticos» (o 1.º Pacto MFA/Partidos): «Os objectivos da nossa luta centram-se em torno da defesa da revolução democrática e afastam-se, claramente, da revolução socialista militar. Porque, para nós, o 25 de Abril foi, é e continua a ser uma revolução democrática. Para consolidar a Revolução será necessário: estabilizar a democracia; dinamizar a democracia; optimizar a democracia.»
Viria o 2.º Pacto MFA/Partidos, que eliminou as exigências mais gravosas contra a democracia. E a Assembleia Constituinte concluiria o seu trabalho a 2 de Abril. O CDS, tendo contribuído para todo o conteúdo democrático da Constituição, votou contra o texto final, em virtude do excesso de carga ideológica socialista. Assim voltou a marcar a ideia de alternativa que vinha afirmando.
Em 8 de Fevereiro de 1976, num comício em que o CDS encheu a Praça do Campo Pequeno (bancadas e arena) para os apoiantes ouvirem Maria Laura Pinheiro, Basílio Horta, Amaro da Costa, Galvão de Melo e Freitas do Amaral, o Adelino marcou bem a ideia: «Somos oposição, somos reformistas, somos alternativa.» Estava dado o tom da campanha eleitoral para a primeira Assembleia da República. Seria feita precisamente sob o lema “Alternativa 76”, obtendo o prémio de o CDS subir de 7,5% para 16% e de 16 para 42 deputados. Nada mau.
A oposição do CDS seguia um estilo que Amaro da Costa, como líder parlamentar, afinou na I Legislatura. Fê-lo, de forma particularmente clara, em 15 de Abril de 1977, numa declaração política em S. Bento:
«O CDS lançou, em Portugal, o conceito de oposição civilizada. Num País habituado ao radicalismo e à intolerância, essa não era uma noção fácil de compreender e aceitar. Mas fez o seu caminho. E hoje não é só o CDS que afirma a sua recusa em enveredar pelas vias da oposição sistemática. Os portugueses entenderam bem que a batalha da recuperação económica não se compadecia com ter o coração político do País batendo a um ritmo de 120 pulsações por minuto, sob pena de colapso cardíaco. Era necessário um período de acalmia política capaz de permitir o debate e o lançamento das medidas indispensáveis à viabilização da nossa depauperada economia. E esse período, em certa medida, verificou-se nos últimos meses. Mesmo as forças antidemocráticas ou mais interessadas na conquista do Poder por via não democrática viram-se obrigadas a refrear os seus impulsos desestabilizadores. Isso aconteceu graças, em grande parte, aos esforços levados a cabo pelo CDS no sentido de imprimir à acção oposicionista um tom de realismo, moderação e equilíbrio.»
E, de seguida, permitindo ver que era mesmo oposição, disparou 35 perguntas ao Governo de Mário Soares (PS sozinho), sobre os mais variados sectores, que teriam de ser respondidas numa sessão especial marcada nos termos do Regimento de então.
O prestígio do CDS crescia com intervenções destas.
4 A caminho da maioria: de passagem pelo PS, chegar à AD
A preocupação seguinte do CDS era continuar “fora da carruagem”, como durante o tempo dos Governos Provisórios. Objectivamente, o voto contra a Constituição agravava esse risco porque podia contribuir para a estigmatização, a segregação e a marginalização. Aí, Amaro da Costa contribuiu decisivamente em dois movimentos estratégicos fundamentais.
Um foi bem pensado: a maioria presidencial. Ramalho Eanes, que emergira com o 25 de Novembro, foi rapidamente lançado como o candidato à Presidência da República com apoio das forças democráticas: PS, PSD e CDS. Da parte do CDS, era um apoio sentido, genuíno, verdadeiro. Gostávamos genuinamente de Ramalho Eanes e tínhamos muita gratidão por aquilo que representava. Mas a circunstância política era também propícia para colocar o CDS “dentro da carruagem” e foi isso que Amaro da Costa fez, insistentemente, em muitos textos que escreveu e declarações que proferiu, cunhando e consolidando a expressão “maioria presidencial” como novo conceito político incontornável.
O outro surgiu por acaso: o Governo PS/CDS. Com a queda do Governo PS sozinho, produziu-se um vazio difícil de preencher. O CDS tinha os deputados suficientes para resolver a questão e as direcções do PS e do CDS tinham boas relações pessoais e políticas, consolidadas nos momentos mais difíceis do PREC. Não havia outro momento como este para situar de vez o CDS como “partido de Governo”. Para mais, o país vivia a primeira crise muito séria, com o FMI à porta. Havia também imperativos de interesse nacional que empurravam essa solução.
Os preconceitos adversos eram tantos, à esquerda e à direita, que a coisa não era como, depois, toda a gente passou a dizer: “governo PS/CDS”. A fórmula oficialmente chamava-se “Governo PS com personalidades” – como que a significar que os ministros e secretários de Estado do CDS não eram do partido, mas “personalidades” avulsas. E também não se dizia uma coligação, mas apenas um “acordo de incidência parlamentar” entre PS e CDS.
Adelino Amaro da Costa participou activamente e, às vezes, conduziu a navegação entre rochedos para conseguir concluir este ousado acordo político. Era também inédito. Inédito para trás e “inédito” para a frente, pois nunca mais se repetiu. Mas chegou a haver grandes projecções sobre o efeito que teria no sistema partidário nascente, caso a experiência durasse até ao fim da legislatura. A ideia no CDS mais optimista era de que permitiria suplantar o PSD e conferir ao CDS a liderança ao centro e à direita. Era a “teoria das bossas do camelo”, que levaria PS e CDS a serem os altos montes do sistema e o PSD a afundar-se no vale entre os dois.
A realidade foi ao contrário: o Governo durou seis meses. O PSD e forças sociais independentes, agindo na sociedade entre PS e CDS, foram criando muita insatisfação e alguns dossiers tornaram a experiência insustentável para o CDS. Foi sobretudo o caso da política agrícola titubeante (ou comprometida com o PCP) do ministro socialista Luís Saias, para mais na área politicamente explosiva da Reforma Agrária.
O Governo caiu. Tanto era a última solução naquele quadro parlamentar, que, a seguir, não houve outra. Teve de se entrar na fase dos Governos de iniciativa presidencial.
Apesar de algum criticismo interno, forte, o CDS não perdeu nada; antes ganhou muito em termos de operabilidade política. O partido “fora da carruagem”, pára-choques do regime, galgou para o centro do terreno. Com a maioria presidencial e aquela breve passagem pelo governo, passou a contar e até a poder conduzir o jogo estratégico. Suavemente. Discretamente.
Pouco depois, no final de 1978, é o CDS que convida PSD e PPM para o que se chamou “Convergência Democrática”: encontros regulares tripartidos entre os três para análise da situação e ponderação de formas de cooperação pontual. Onde é que, um ano antes apenas, o CDS podia tomar esta iniciativa e vê-la correspondida? Nunca.
A praça do futuro estava assim desenhada. Faltava ainda saber se era só conversa, ou se ia haver avenida. Houve. A avenida foi a Aliança Democrática (AD), traçada a partir da crise do governo Mota Pinto, a meio de 1979, e da iminência do Governo Pintasilgo. Voltou-se àquele quadro tripartido (PSD/CDS/PPM), mas agora num propósito consequente: listas conjuntas para a Assembleia da República, para vencer a maioria de esquerda e, como Sá Carneiro apontava, quebrar finalmente o “impasse”.
Sá Carneiro foi aquele que depressa o entendeu dentro do PSD; e, por isso, não teve dificuldade em liderar o conjunto, mas também em levar a sua avante dentro do seu partido. Foi um momento extraordinário de viragem:
- Forte mobilização popular, com domínio claro nas ruas;
- Vitória com maioria absoluta (curta) de deputados, nas intercalares de 2 de Dezembro;
- Vitória esmagadora nas autárquicas de 16 de Dezembro;
- Nova vitória com maioria absoluta (folgada), nas legislativas de 5 de Outubro de 1980, para a II Legislatura.
Melhor era impossível.
Na origem de tudo, estavam as excelentes relações pessoais e políticas entre os três líderes da AD e também entre Sá Carneiro e Amaro da Costa, que redigia muitos dos textos fundamentais, como foi o caso do Manifesto Eleitoral da AD, para as legislativas de Outubro.
6 Freitas e Adelino: um tandem perfeito e constante
Além da qualidade dos dirigentes e do seu geral espírito generoso, o desempenho excepcional do CDS original beneficiou muito da fortíssima relação entre Freitas do Amaral e Amaro da Costa. Ambos muito inteligentes, mas diferentes. Diogo era um sobretudo um dedutivo, racional, cartesiano, apreciador da coerência, da harmonia, do sistema. Adelino era um intuitivo, com grande instinto para as saídas difíceis, forte imaginação, muito dotado de inteligência emocional. Diogo era um homem mais fechado, tímido. Adelino era extrovertido, explosivo, vulcânico.
Tinham uma relação de absoluta confiança entre eles. Algumas vezes a intriga política desenvolvia-se da forma habitual. Uns, iam junto de Freitas do Amaral dizer-lhe: “Sabe, Diogo, você é um homem sério, um professor, uma pessoa que se admira e se segue. Mas tem de substituir o Adelino, sempre com aqueles jogos, aquelas graças. E é muito à esquerda. Um dia, o Diogo ainda perde o CDS por causa dele. Ele não faz por mal, mas não se ajusta ao nosso partido.” E, outras vezes, vinham os mesmos dizer a Amaro da Costa: “Adelino, você é formidável. Um deputado fora-de-série, um orador notável. Mas tem de afastar o Diogo e tomar o lugar dele. Ele é distante, um antipático. Se não temos cuidado, ainda nos tira o eleitorado. Você é que é.”
Era uma intriga escusada com aqueles dois. Cada um dizia “pois” e continuava tudo na mesma. Imagino que, às vezes, se rissem os dois com as intrigas cruzadas. Uma frase das mais citadas de Amaro da Costa era: «O “adelinismo”? Que disparate! Isso é uma invenção das pessoas que me não conhecem.»
Uma vez, Amaro da Costa desenvolveu-se a explicar o tema de ser um “n.º 2” na política e como o seu papel era fundamental e, por vezes, liderante. Sabia ser o n.º 2. Gostava muito de o ser, porque o líder era o seu n.º 1, que ele escolhera. Sabia que o líder tinha muita qualidade, tinha o pensamento com que ele próprio concordava, tinha qualidades humanas que ele reconhecia e dava-lhe o espaço necessário para imaginar, para arquitectar, para preparar, para construir; e, depois, também o espaço para explicar, para sustentar, para exaltar. O Adelino não queria ser outra coisa que não n.º 2 e resistia facilmente ao veneno da lisonja. Definira e sabia qual era o seu papel; e sabia também que era desse papel que o CDS precisava.
Disse-me que, um dia, iria escrever um artigo sobre o “n.º 2” na política. Nunca o fez, não calhou o tempo de o fazer. Outro artigo que me disse que ia ter de escrever era sobre a Igreja em Portugal. Comentou-me: “As pessoas, Zé, não sabem quanto devem à Igreja em Portugal. Tenho de escrever, tenho de escrever.” Outro artigo para que não teve tempo.
Todos viríamos a experimentar a razão de Adelino Amaro da Costa quanto ao “n.º 2”: Camarate foi muito mais duro para o CDS e para Freitas do Amaral do que para o PSD. É muito mais difícil substituir um n.º 2 do que um n.º 1. Quando é o líder que falta, o partido, mais ano, menos ano, acaba por encontrar outro, com mais ou menos bulha – e tudo recomeça. Mas, quando é um “vice”, é muito mais difícil, porque, além de encontrar alguém talentoso, é preciso que esse alguém tenha, ao mesmo tempo, a confiança mútua com o líder e a confiança, o apoio e a admiração das bases. É muito difícil. E pode ser impossível. No caso do Adelino, foi impossível.
Exausto e descontente, Freitas do Amaral viria a sair da liderança do CDS no fim de 1982. Reencontrou-se consigo mesmo num novo papel de homem só – o candidato presidencial do “Prá Frente Portugal”, o melhor Freitas de sempre. Mas, a seguir, retomando o partido ou como independente, as coisas nunca voltaram a fazer sentido, durável e longínquo.
6 O democrata-cristão todo-o-terreno
Amaro da Costa era um democrata-cristão nato. Não o afirmava, porque, embora sendo essa a substância – ou a raiz da substância –, não era essa a linha de afirmação do partido. A linha de afirmação era o personalismo ou humanismo personalista. Era o que constava da Declaração de Princípios e era isso que enchia os discursos e destes transbordava.
Mas, com o curso do tempo, a classificação democrata-cristã – que sempre constou nos Estatutos, desde o célebre Congresso do Palácio de Cristal – colou-se naturalmente ao CDS e à generalidade dos dirigentes. As pessoas percebiam, aliás, mais facilmente o que era democracia-cristã do que personalismo. E o relacionamento internacional do CDS foi determinante, sendo essa a família em que depressa se integrou com extraordinário sucesso, graças àquela dupla Freitas/Adelino e ao prestígio que rapidamente conquistaram em toda a Europa.
O Adelino era um cristão comprometido, consciente das responsabilidades dos cristãos na política e, em geral, na cidade. Seguia outra prática que lhe era habitual: não ia a um distrito em trabalho, em visita política, que não pedisse para ser recebido na diocese e aí ir trocar uns dedos de conversa com o Bispo ou Arcepispo. Lia as Encíclicas e outros textos papais, assim como as principais orientações pastorais dos bispos. Fazia-o para si, mas procurava reflecti-lo na sua acção política. Gostava de ler esses documentos, mas não me lembro de o ouvir citá-los, isto é, não gostava de instrumentalizar. Usava a consciência dentro de si, não na lapela.
Havia um tema predilecto da intervenção de Amaro da Costa que podemos atribuir indistintamente ao referente centrista, ao democrata-cristão e ao personalista – ele tinha todos estes referentes e não são muito diferentes entre si. Era o tema da moderação, que afirmou muitas vezes como um dos valores políticos constituintes do CDS e nada tem a ver com firmeza ou moleza.
No dia a seguir a tomar posse o Governo da AD, foi a este tema que dedicou um artigo no semanário “O Jornal” – “Moderação e Conciliação”, 4. jan.1980. Cito o princípio:
«A moderação, em política, é um estilo e não uma máscara ou uma linguagem. Pressupõe saber ouvir sem dogmatismo nem preconceito e saber falar sem retóricas nem demagogia. Exige tratar o real como um dado objectivo da corrente histórica e não como um elemento mais ou menos afim da subjectividade de quem o encara. Implica uma séria consideração das relações de força sociais e culturais em presença ou em conflito, mais do que a simples análise dos jogos de poder entre as superestruturas políticas. Impõe o reformismo e rejeita o revolucionarismo. Serve-se da mudança para evitar a ruptura.
Pode-se ser moderado na esquerda ou na direita, porque a moderação é um modo de estar na política. E sem moderação não há democracia que sobreviva. (…) Onde estamos hoje, em Portugal?»
Via-se, quando falava, que respirava os longos ensinamentos de um século de democracia-cristã, nos valores e princípios que transmitia. Era também, por vezes, um craque surpreendente. A DCI, a democracia-cristã italiana, era, na altura, uma das grandes estrelas da política europeia e o Adelino, que os conheceu na UEDC, tornou-se um dos seus heróis. Aconteceu ir espreitar uma campanha eleitoral em Itália e desafiaram-no a discursar num comício. O que ele logo aceitou e fez, com brilho e graça, em italiano e tudo. Nunca mais quiseram outra coisa: não havia eleições em Itália que não convidassem Amaro da Costa para ir fazer dois ou três comícios.
Aplicava a esta comunicação as técnicas parlamentares em que era exímio. A primeira entrevista que dá, a seguir a tomar posse como ministro da Defesa Nacional do Governo da AD, foi, em 9 de Janeiro de 1980, ao “Povo Livre”, órgão oficial do PSD. É muito interessante, versando sobre os mais variados assuntos. Tal como o artigo que citei há pouco, está publicada, na íntegra, no livro “Escritos de Governo”, de Adelino Amaro da Costa, numa colecção póstuma organizada, em edição do IDL, pelo Comandante Manuel Pinto Machado, que foi o seu adjunto militar no gabinete de ministro.
A directora era Helena Roseta, que lhe fez a entrevista. Cito da entrevista uma parte bem engraçada do diálogo sobre uma parte recente do seu passado, que abandonara ao ir para o Governo:
«HR – As pessoas habituaram-se a ver em si, para além das suas qualidades e do lugar que ocupa na liderança do CDS, um dos melhores, senão o mais brilhante parlamentar da anterior Assembleia da República. (…)
AAC – A figura de um parlamentar identifica-se perante a opinião pública com a de um político puro, isto é, com a combinação de três profissões: actor, jornalista e jogador de futebol.
HR – Tenho de lhe perguntar, já que tem qualidades reconhecidas de actor e de jornalista, se joga futebol…
AAC – Joguei râguebi e futebol. Um político tem que ser actor, porque tem de interpretar um papel que os eleitores lhe atribuem; jornalista, porque tem de captar as correntes da opinião pública e conhecer os factos em relação aos quais tem de intervir. Mas também não lhe basta estar diletantemente a analisar os factos, ou a interpretar papeis. Tem de servir valores e pontos de vista daqueles que o elegeram, tem de chutar à baliza e marcar golos. Esta é a imagem do parlamentar.»
7 A Manucha que chegou à vida do Adelino
Em 1979, aconteceu ao Adelino algo de inesperado para todos. Apaixonou-se. Ele era um homem exuberantemente apaixonado pela vida, mas por alguém… não conhecíamos. Foi a Manucha: Maria Manuela Simões Vaz Pires, nascida em Agosto de 1946, em Lourenço Marques.
No CDS, face à intensidade hiper-full-time com que Amaro da Costa vivia a política e, em especial, o partido, sempre disponível para mais uma sessão, mais uma reunião, para mais uns dedos de conversa, era comum as pessoas comentarem que ele podia fazer isso, porque “não tem família”. Queriam dizer que ele era solteiro, não tendo de repartir o dia-a-dia. O Adelino dava a casca quando lhe chegava aos ouvidos este comentário. Não ficava zangado, que não era temperamento para isso. Mas desconsolado com a ignorância emocional de tanta gente. Conhecia esse cometário como normal – e não só com ele –, mas detestava-o.
Uma noite, em 1978, num concelho perto de Viseu, num fim-de-semana de Conselho Nacional e após dia intenso de actividade partidária, um dirigente local convidou dirigentes nacionais e locais para uns petiscos em casa dele. Era um barracão rural adaptado a adega para patuscadas com amigos. Bebeu-se vinho, comeu-se pão e enchidos e umas alheiras pequenas de várias qualidades, de caça e outras, magníficas.
O Adelino, às tantas, começou a falar e todos se calaram para ouvir. Falou da solidão da política e, sem falar de si, da solidão dele também. Não era uma queixa, nem um lamento, apenas uma narrativa. As pessoas nunca tinham pensado nisso. Vi, naquela adega, homens mais velhos, bastante mais velhos que ele, muitos a uma vez só, de lágrima nos olhos, enquanto o escutavam. Só uma vez se referiu a si, para citar as pessoas que diziam que ele não tinha família. Não falava com mágoa, sorria. Falou da mãe e do pai, do irmão e da irmã, dos sobrinhos – a sua família. E falou também da solidão da decisão do político, tanto mais só quanto mais difícil era a decisão e quanto maior era a responsabilidade. Depois, para quebrar o peso da fala, contou uma ou duas histórias engraçadas de decisões tomadas com Freitas do Amaral, a sala riu em gargalhadas e todos romperam em aplausos, terminando em beleza o serão.
A Manucha era uma pessoa adorável, de sorriso terno, que facilmente conquistou o campo exigente de amigos e seguidores do Adelino. Dela naturalmente nos fazíamos amigos também. Era uma mulher muito inteligente, doutorada em Química e professora universitária na Faculdade de Ciências. Não teve dificuldade em concluir com brilho um tirocínio em actividade política.
A Manucha estava completamente apaixonada pelo Adelino. O Adelino estava completamente apaixonado pela Manucha. Eram uma companhia tão perfeita um do outro que, ao fim de uns meses, era difícil lembramo-nos como alguma vez tinha sido diferente. Casaram em Palmela, em 3 de Novembro de 1979. Morreram em Camarate, em 4 de Dezembro de 1980. Não sendo, como disse, dado a confabulações cabalísticas, isto fez-me sempre muita impressão: o casamento deles durou exactamente um ano, um mês e um dia.
Estão ambos sepultados num mausoléu de mármore preto, exclusivo dos dois, que amigos fizeram construir em S. martinho das Amoreiras, com recurso a uma subscrição pública. Numa das faces do mausoléu, está uma frase que escolhi, pensando na vida que conheci ao Adelino e, naquele local, pensando também na Manucha, que morreu com ele, ao seu lado.
A frase é de um diálogo de Moisés com Deus, no monte onde recebeu as Tábuas da Lei. Moisés está inseguro, com receio de não ser capaz, medo de falhar o que Deus pede, temendo não estar à altura. E Deus responde-lhe de forma poderosa e total: «A minha face irá diante de ti e dar-te-ei descanso.»
Acredito que o Adelino, católico profundo, várias vezes se confrontou, na solidão do quarto, ou de um monte alto, ou de uma praia vazia, sobre a dúvida no seu caminho. E, para ele conseguir ter a certeza que a todos sempre nos transmitiu, com aquele sorriso largo e resoluto tom de voz, é porque várias vezes ouviu, dentro de si, na fonte de tudo, aquela frase, por aquelas ou outras palavras. «A minha face irá diante de ti e dar-te-ei descanso.»
É impossível saber, calcular ou sequer imaginar como seriam as coisas hoje, se aquela tragédia de Camarate não tivesse acontecido. Nestes 40 anos em que não tivemos Amaro da Costa – e todos os que morreram com ele –, já passou tanta água debaixo das pontes e 40 voltas inteiras a Terra deu ao Sol, que ninguém pode, com juízo, deitar-se a adivinhar como seria tudo.
Só podemos ter duas certezas. Uma: seria certamente melhor. Outra: com o Adelino, seria seguramente muito divertido.