Como já referi e escrevi, o paradigma do retalho alimentar mudou este Verão com a compra da Whole Foods pela Amazon. Um operador puro de e-commerce que compra um operador bricks and mortar convencional tem muito que se lhe diga. Não apenas por ser estranho – a evolução parecia ir para o outro lado, i.e., cada vez mais operação on-line a partir da evolução da operação física – como por ser o reconhecimento de que a operação física existe e existirá (provavelmente) sempre – tal como conhecemos o mundo hoje.

Para quem trabalha em operações e em supply chain, não obstante o crescimento desmesurado das operações nos serviços e das living supply chains, estas são sempre boas notícias. Mesmo sabendo das evoluções da nanotecnologia e do 3D printing, da IoT e da sensorização de tudo quanto mexe, da robotização, da realidade aumentada, do self scanning ou da in store navigation e de todas as possibilidades dos dados e sua análise, a verdade é que confirmar (e reiterar) a continuidade do mundo físico é sempre uma máxima a sublinhar.

Lembro-me bem dos disparates da primeira grande bolha tecnológica (e em particular os do retalho alimentar e não alimentar) e não gostaria de ver repetidos os mesmos erros quando há hoje muito mais conhecimento, mais e melhor tecnologia e uma curva de aprendizagem nada despicienda. Lembro-me também de ter ganho um prémio internacional, o prémio mais mal ganho da minha vida, por um contributo e um alerta para os disparates que se fizeram e se estavam a fazer por se acreditar que se venciam problemas físicos exclusivamente baseados em tecnologia. À data o cerne foi a last mile (a entrega na última milha para o e-commerce em geral).

Voltando ao princípio, a Whole Foods, é verdade e temos de o admitir, é um operador com pouco mais de 400 lojas o que, para os Estados Unidos, é efetivamente pouco. Porém, é também verdade que foi lançada nas mãos inexperientes (quanto à operação convencional) da Amazon uma cadeia alimentar com armazenagem de frio, com fábricas de pão e bolos, com cozinhas regionais, com 11 centros de distribuição e as tais mais de 400 lojas. E muito se esperava e espera deste movimento. O primeiro efeito visível pós instalação de um sistema de inventário para conseguir reduzir drasticamente stocks (Order-to-Shelf) é que não tem conseguido o comprometimento dos colaboradores e o desespero parece ser gritante, para além da quantidade astronómica de roturas de produtos que afastam clientes das lojas. Para a Amazon esta é a grande derrota no campeonato de inverno do retalho convencional.

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Adicionalmente, a ideia não parece ser o desenvolvimento, tout court, de uma Amazon Go em cada loja Whole Foods. Nem tal faria sentido na medida em que a Amazon Go é uma loja “sem serviço”, sabendo todos que o “bruaá” vem muito mais do facto de não ter a “experiência de filas de espera em caixas de saída” do que de qualquer outro argumento. Eliminar as caixas de saída, com o desenvolvimento tecnológico de hoje, nem é uma questão complexa. Um pouco de codificação, de inteligência artificial, de realidade aumentada e um smartphone, para além de um sistema de informação poderoso em backoffice, e a coisa faz-se.

A questão crítica está em que nem uma Amazon Go serve nem a atual realidade da Whole Foods (em perda de clientes e de dinheiro) serve. Nem tão pouco uma Whole Foods 365 (assente em marca própria) será a resposta, ainda, para o que se pretende ver no retalho mais convencional, de rua, no futuro.

Uma Amazon Go em cada Whole Foods seria o mesmo que dizer, quase certamente, que se queria uma loja asséptica que permitisse eliminar na totalidade as caixas de saída, trabalhando apenas com pré-embalados, frescos ou congelados em caixas preparadas para o efeito. Ora isto significaria, muito provavelmente, que se teria de eliminar o talho, a peixaria, a charcutaria, a padaria e pastelaria, a zona de pré-cozinhados, mesmo as zonas on-demand para que houvesse o fim de todas as filas de espera – e também de todo o serviço in store. Seria o mesmo que dizer que todo o cliente para todo o tipo de journey seria sempre um cliente apenas e só orientado ao tempo, à eficiência e à estandardização. Não parece poder ser real porque faltam outros argumentos e efeitos de experiência (quiçá até com co-criação) e a componente de customização. Uma Amazon Go em cada loja Whole Foods não é, efetivamente, o futuro. Uma Whole Foods 365, apenas centrada em marca própria, é certamente um conceito mais ajustado mas ainda pouco tecnológico e pouco convincente para o que se pretende para loja do futuro.

Do outro lado do mundo, e olhando para as 13 lojas da cadeia Hema na China, pertencente ao gigante on-line Alibaba, parece ser possível, efetivamente, criar qualquer coisa mais próxima do efeito customização e experiência in store. Não sei se adaptável ao mundo Ocidental mas certamente um caso a não perder.

E o que tem de especial a Hema? Bom, para já é claramente o campeão de inverno do retalho alimentar ao fundir, aparentemente bem, componentes on-line e convencionais com experiência loja e possibilidade, inclusive, de refeições em loja pedindo para cozinhar o que se compra em fresco. É certo que tem também reconhecimento facial em caixas de saída, não para todos os produtos e clientes, eliminando, em alguns casos, as filas de espera. Mas não é bem esse o grande motivo que me leva a apontar o exemplo da Hema mas, antes, o ser um melhor híbrido, a seguir com atenção, entre o on e o off-line.

As lojas Hema oferecem uma seleção considerável de produtos frescos e, como acima referi, poderão ser inclusive enviados para a cozinha de loja para serem confecionados e/ou ali digeridos. No marisco, em algum peixe e mesmo em carne ou vegetais e leguminosas é permitida a escolha em fresco e o envio para a cozinha de loja para cozinhar (30 minutos). Cada loja consegue acolher 100 pessoas na zona de alimentação in store (lotação para 100 pessoas).

A utilização massiva de códigos de barras em todos os produtos permite scannar e saber a origem do produto, o valor nutricional, o preço e tanta outra informação. O código de barras é, aliás, o centro de toda a operação e mesmo da experiência em loja. Permite toda a comunicação e interface entre os mundos físico e digital e também o pagamento.

Se os clientes não se deslocarem às lojas Hema podem colocar pedidos on-line e os colaboradores de loja farão picking (recolha das compras) na própria loja que, posteriormente, será passada para um backoffice (através de um conveyor de tecto, literalmente por cima das cabeças dos clientes em loja) e para a correspondente operação de entrega num raio de 3 quilómetros da loja. O shipping prometido demora 30 minutos e cada loja Hema trabalha milhares de items diferentes por dia em ecommerce com picking de loja.

Ora, na comparação de inverno, e apesar de serem apenas 13 lojas, o modelo Hema parece ser bastante mais inspirador para o que será o futuro da Whole Foods do que o é, hoje, a Amazon Go ou a não convicente Whole Foods 365. Por isso se disse que o campeão de inverno é a Hema. Com larga vantagem. A Amazon é ainda, no retalho convencional, um aprendiz de bricks and mortar.

No dia do encontro entre Jack Ma (Alibaba) e Jeff Bezos (Amazon) este último terá de cumprimentar o primeiro por ser, para já, quem melhor conseguiu unir o on e offline numa experiência interessante para o retalho alimentar. Admito que Bezos não queira permanecer muito tempo nesta posição. Assim, haverá novo vencedor no campeonato de Verão?

Professor Catedrático – NOVA SBE – NOVA SCHOOL OF BUSINESS AND ECONOMICS, crespo.carvalho@novasbe.pt