1 Esta crise começou há mais de um mês, em 27 de Outubro. Nesse dia, o Orçamento foi reprovado, arrastando a queda da maioria que apoiava o governo. Ora, o facto mais inquietante em tudo o que se tem passado, a caminho de eleições legislativas em 30 de Janeiro, é ninguém à direita parecer seriamente preocupado com o único objectivo que interessa: vencer a maioria de esquerda e pôr-lhe termo. Ou isto acontece, e teremos realmente mudança política em Portugal; ou tudo continuará fundamentalmente na mesma, com mais pântano, ou menos pântano.
Dizendo por outras palavras, temos estado a ser orientados pela estratégia do fracasso. E, à direita, as forças tonitruantes e os influencers de turno têm estado concentrados no quintalinho de cada um, ao mesmo tempo que negligenciam as exigências do país e as aspirações do eleitorado do centro e da direita. Uma vez que descrêem das possibilidades de o conseguir (e, reconheça-se, têm feito o máximo para a sua fraqueza), abdicam de afirmar aquele propósito, no calculismo de, depois, ninguém apontar que fracassaram.
Estão enganados: quando pensam e agem assim, já fracassaram. Viciados em dirigir para as expectativas, em vez de para os objectivos, perderam completamente a noção do principal: ganhar, efectivamente ganhar.
2 Este estado mental enfraquecido em que estamos é o arrastamento ainda de um erro terrível que nos feriu em 2015 e nos mantém ainda cambaleantes: a ideia tola de que ganhámos (a PàF) as eleições decisivas desse ano.
Já me fartei de escrever e falar sobre isto – chamei-a de “burla auto-induzida”. Não vou repetir-me. Recordo somente o principal: em 2015, fomos os mais votados, mas não ganhámos a eleição no sentido de dela tirarmos directamente o poder de governar; quem ganhou esse poder foi a esquerda, que conquistou nas eleições a maioria – e sempre arranjaria uma fórmula para a tornar operativa, como aconteceu. Nem percebo, ainda hoje, onde teremos perdido a noção deste essencial.
Em 2011, tínhamos obtido essa maioria absoluta, com PSD e CDS a somarem 50,4% dos votos e uma maioria parlamentar confortável: 17 deputados a mais dos 115, isto é, uma maioria de 34 deputados acima da esquerda. Onde fomos nós buscar a ideia de que, em 2015, não era preciso e nos bastavam 38,6% dos votos? Que “novimatemática” criámos para termos a ideia de ganhar com oito deputados a menos dos 115, ou seja, 16 deputados abaixo da esquerda? Em 1979, quando se fez a primeira PàF (então, a Aliança Democrática), fizemo-la exactamente para isso e por causa disso: vencer a maioria de esquerda. Atingimo-lo à justa; e reforçámos essa maioria em 1980. Onde, diabo, nos perdemos pelo caminho, quanto a esse essencial?
3 Como já tenho referido, penso que a actuação da direcção do CDS, nesse período de 2012 a 2015, marcada por muitas hesitações na comunicação pública, contribuiu muito para esse insucesso em 2015. Um insucesso mascarado de vitória, mas real insucesso, como os factos confirmam.
Enquanto a actuação geral do partido e do grupo parlamentar era marcada pelo apoio à acção do Governo de Passos Coelho no cumprimento do memorando da troika – a parte mais difícil, mais exigente e mais necessária desse mandato –, dirigentes do CDS e a liderança deram, a partir de meados de 2012, frequentes sinais de demarcação, de reserva ou de divergência. O primeiro mais forte foi a respeito da TSU, em Setembro de 2012. Houve vários outros em diferentes momentos, nomeadamente na preparação dos orçamentos de 2013 e 2015. Um marco inapagável dessa divergência foi a crise do “irrevogável”, quando Paulo Portas, em Julho de 2013, anuncia de repente a sua demissão, em ruptura frontal, o que só a inspiração e a inteligência de Passos Coelho conseguiriam parar e reparar. Pouco antes, uma pergunta de deputados do núcleo dirigente provocara a sugestiva manchete: “CDS pergunta a Gaspar porque é que nunca acerta nas previsões”. Estava a subir o tom contra o ministro das Finanças, Vítor Gaspar. Mesmo depois da saída deste, as desmarcações aconteceram, normalmente por notícias em off, como na ultimação do OE 2015, em Setembro/Outubro 2014.
A intenção destes acenos de diferença era certamente o de poupar o CDS e sua liderança à erosão inerente à aplicação de um programa de estabilização tão exigente (e duro) como o que resultava do memorando da troika. Sempre pensei, porém, que este “benefício” era ilusório, pois o CDS acabava sempre por participar na aplicação dessas medidas e, portanto, a partilhar a responsabilidade. Além disso, essa táctica provocava graves danos: como podíamos nós explicar, depois, que essas medidas eram absolutamente necessárias e inevitáveis, quando a imprensa dera nota de o líder do CDS ou outros dirigentes se oporem ou terem fortes reservas? Se não queriam tais medidas e estavam a governar só podia ser por haver alternativas melhores. Isto é, transmitia-se uma ideia errada, pagava-se o preço a dobrar.
4 Esta acção crítica e de desgaste, onde se destacaram também algumas figuras do PSD, teve efeitos muito negativos na percepção pública da acção governativa. Desviou as atenções da enorme responsabilidade do PS e de José Sócrates na situação de ruína para que tinham conduzido Portugal e no próprio pedido de socorro à troika e negociação do seu memorando. Tirou a culpa dos culpados, transferindo-a para quem retirou Portugal do fundo do poço.
Ainda hoje, com sério dano para o crédito político de PSD e CDS, há muitos que têm o descaramento de culpar Passos Coelho e o seu governo, desmerecendo o cumprimento do programa definido e a recuperação do país, recolocando-o na rota da estabilidade e impedindo todas as tentações de derrapagem para os desastres consecutivos por que passou a Grécia.
Aquela duplicidade de discurso dentro das hostes é a principal fonte desse fracasso na comunicação e imagem pública. Como não havia alternativa, se de dentro se sinalizava que havia alternativas?
5 A demora na decisão das listas conjuntas foi factor determinante para a derrota em 2015 – confirmámo-lo depois, quando faltou tão pouco. A direcção do CDS retardou o seu acordo ao longo de todo o ano de 2014. As listas conjuntas deviam ter sido anunciadas ao mesmo tempo que para as europeias. O atraso (inexplicável) prejudicou todo o último ano da legislatura, feito em voo de planador, quando governo e maioria deviam ter acelerado e posto a oposição debaixo de pressão, com a missão cumprida e uma conjuntura em que todos os indicadores melhoravam.
Anunciada a coligação PàF apenas a cinco meses das eleições, ainda assim se viu rapidamente o seu impacto positivo. Muitos comentaram no rescaldo das eleições que, com mais um pouco de campanha, ter-se-ia obtido a maioria absoluta indispensável. Esse “mais um pouco” foi o tempo perdido em 2014.
6 Levou-se demasiado tempo a compreender que perdêramos e, assim sendo, que era urgente recuperar. As autárquicas de 2017 foram preparadas por PSD e CDS, como se tivéssemos vencido 2015 e não fosse indispensável concertarmos estratégias de recuperação rápida e efectiva.
Apesar de algumas coligações, quase todas vindas de trás, não houve um esforço conjunto para retirar ao PS a maioria de Câmaras que alcançara em 2013. Não se seguiu o que chamei de “estratégia do mapa cor-de-rosa”. Quando precisávamos de ficar à frente do PS para ganharmos superioridade para abordar as eleições de 2019, acabámos por ficar pior do que estávamos.
No PSD, Passos Coelho teve de sair; e, no CDS, o fim do ciclo foi desastroso, com Nuno Melo e Assunção Cristas a recolherem em 2019 os piores resultados de sempre do CDS em eleições europeias e em legislativas. Os partidos da geringonça ganharam outra vez e com mais votos (de 50,8% para 52,1%) e deputados (de 122 para 139) que em 2015.
7 Mudada a direcção do CDS, deveria esperar-se que todos colaborassem, honrando a democracia no partido, para recuperação sólida e urgente do CDS, que caíra a um ponto deplorável, em vários domínios. Nada disso.
Traumatizados por não terem ganho o Congresso, os afectos à direcção anterior entrincheiraram-se nas suas posições e procuraram causar dano e desgaste contínuo aos novos dirigentes, assim prejudicando o partido e também o centro e a direita. Têm sido dois anos de incidentes e confrontos provocados pela brigada do traumático.
Nem a abertura da crise política os fez parar e convergir para enfrentar a esquerda e vencer a oportunidade aberta. Agravaram o confronto e o discurso de fractura.
8 O tempo corre, enquanto, à direita, continuamos no nosso campeonato privativo de golos na própria baliza. As eleições estão quase aí. É confrangedor ver uma porta a abrir-se e sermos nós a fechá-la, erro atrás de erro, com grupos, grupinhos e grupetas entregues à sua frenética lógica deletéria. Nunca tivemos em Portugal três eleições consecutivas de que resultasse maioria de esquerda. Já tivemos duas; vamos a caminho da terceira. Quando muitos factos nos causam repúdio e tantas leis – por vezes, bem radicais – são impostas pela esquerda, importa termos consciência dos erros no nosso campo, acabar com eles de uma vez por todas.
Há dias, num artigo neste jornal, “Os empatas”, Maria João Avilez interrogava-se sobre o «que faria Sá Carneiro “disto”.»
Três coisas, certamente: primeiro, não teria deixado as coisas chegar este ponto; segundo, há muito, teria apontado o propósito e a estratégia para lá chegar; terceiro, se o propósito é vencer, estaria claramente na reconstrução urgente da AD, para recuperar o tempo perdido e intensificar a mobilização. De resto, Açores e Madeira (que não tinham aceitado listas conjuntas nem em 1979/80, nem em 2015) já mostraram esse caminho para 2022. Seria muito estranho que, noutro frete à geringonça, fosse o Continente a faltar à chamada.
Temos que afastar a estratégia do fracasso em que temos andado.