Morreu a Ana Francisca. Quando a conheci eu ainda não sabia, mas ela já era heroína há muito tempo.
Está aqui, à minha frente na secretária, tudo o que tenho sobre ela: o processo clínico ainda em papel, o capítulo de um livro que revela pormenores da sua vida e dezenas de pequenos papéis que me deu ao longo dos anos, escritos por sua mão, com a sua letra preciosa, com os seus versos extraordinários.
Versos sobre a vida dura e difícil que teve. Versos sobre a doença que a traiu na recta final, quando seria justo ter algum descanso. E versos sobre um amor que me confidenciou.
Está aqui isso tudo. E não está aqui nada que lhe faça verdadeira justiça.
“Hoje acordei a pensar
Nos meus tempos de menina
Faz-me rir, faz-me chorar
Lembrar a vida que tinha
Eu, de mim, não tinha nada
Lia livros emprestados
E… sempre qu’os entregava
Era eu qu’ia aos bocados”
A Ana Francisca nasceu em Agosto de 1942, numa aldeia alentejana. O seu pai morreu com 30 anos, deixando a esposa e duas filhas, de dois e de três anos, sem trabalho e numa situação de pobreza extrema. Durante cinco anos, a pequena Ana Francisca e a irmã vestiram de luto carregado, como era o costume. Passaram fome e comiam pão sem mais nada, às vezes pondo um pedaço pequeno de pão por cima de um bocado maior, para fingirem que era queijo…
A sua irmã era como o pai, loirinha e de olhos azuis, enquanto ela era morena, como a mãe. E as pessoas, quando as viam, elogiavam muito a beleza da irmã, a quem davam muitas festinhas, e à Ana Francisca não. Ainda por cima, a Ana Francisca era canhota e ouviu várias vezes a mãe dizer que o seu maior desgosto era a sua filha mais velha ser canhota.
Era muito boa aluna, mas a pobreza não permitiu que continuasse na escola para além da 4ª classe. Mesmo assim, não desistiu e, estudando por si própria, conseguiu ser aprovada no exame ad hoc de acesso ao ensino superior, algo que era extremamente difícil à época. Apesar desse sucesso, não houve condições para poder ingressar na universidade, tendo tirado um curso técnico profissional de Agente de Educação Familiar Rural.
“Os meus sonhos pendurei-os no estendal
E fiz deles com orgulho uma bandeira
Voaram com o vento, não faz mal
Sonhá-los-ei a minha vida inteira”
Aos 25 anos, apaixonou-se por um padre, capelão militar. Durante sete anos, namoraram e passearam pelo País todo. Mas depois, como ela não queria casar e ele não podia, separaram-se de comum acordo, amigavelmente. Pelo menos foi o que me contou. A Ana Francisca soube mais tarde que ele tinha deixado o sacerdócio, tinha casado e tido dois filhos. Não sei se alguma vez ela se arrependeu da sua escolha, mas nunca casou e, depois de me confidenciar esta sua história de amor, mostrou-me estes versos.
“A minha felicidade
Depende de ter-te aqui
Será que tu és feliz
Vivendo longe de mim?
Será que o nosso destino
Era não mais nos cruzarmos?
Ou nós é que construimos
Um muro, por separar-nos?”
Desde sempre apaixonada por geologia, foi autodidacta na sua aprendizagem e fazia sessões de voluntariado nas escolas, ensinando e mostrando toda a sua paixão por esta ciência, de que se tinha tornado tão conhecedora. E o seu amor pelo Alentejo acompanhou-a sempre.
“Tece o Sol rendas de luz
Manhãzinha no montado
Parece ponto de cruz
Cada sobreiro um bordado
Visto por mim que lhe quero
Qual filigrana que invejo
Em cada velho sobreiro
Renasce o meu Alentejo”
Cheia de generosidade, foi voluntária e ajudou a fundar uma associação de educação e de apoio a pessoas com deficiência, fazendo parte da sua direcção durante vários anos.
“A ternura dos abraços
Que dei pela vida fora
Adocicou tantos passos,
Tanta dor, tanto cansaço,
Desta viagem tão dura…”
E, vida fora, foi sempre brincando com as palavras, desta nossa língua que adorava.
“Que bela é a língua em que me expresso!
E que lindas as palavras que conheço
Que pequena é a vida para gozá-las…
E que pena tanta gente a maltratá-las.
Sinto gozo nas palavras com que escrevo
A língua que me orgulho de falar.
Entrelaço-as, brincando, com enlevo,
E no fim ficam todas a rimar!”
Com tão pouca instrução, o talento e a inteligência fluíam de dentro de si sem os conseguir suster.
“Este dom com que nasci
De rimar mesmo sem graça
Flui de dentro de mim
Qual rio q’inunda onde passa
Porque eu não rimo se quero
São as rimas que se impõem
Que saem quando não espero
E gritam que até me doem”
No final de uma vida tão difícil e dura, quando se reformou, surgiu-lhe uma doença articular, que progressivamente a condicionou em grande sofrimento. A princípio, os tratamentos ainda a conseguiram melhorar significativamente. Mas depois a doença voltou a progredir, inexorável. Ofereceu-me então estes versos:
“Tenho saudades de mim
Do que fui, do que vivi
Também dos primeiros tempos
Em que eu o conheci
Tenho saudades da esperança
Que então acalentei
Da qualidade de vida
Que sempre lh’agradecerei”
Nos últimos anos, pressentia que o fim estaria próximo. E despedia-se em rimas, que me entregava em cada consulta.
“A doença que os sonhos me levou
Encaro-a de frente, sem temor
Um dia há-de vencer-me, convicta estou
Mas eu já a venci superando a dor”
Na fase final, o seu rosto já nada tinha a ver com a fotografia do sistema informático que continuava teimosamente no ecrã à minha frente. Poucos meses antes do último internamento, com uma enorme lucidez, escreveu:
“As minhas mãos esguias doutros tempos
Estão hoje tão diferentes que ao olhá-las
Eu sinto em mim, mais que constrangimento
Uma saudade enorme, ao mirá-las
Mãos de fada, que tudo realizaram
Em praxia fina e em ternura
Mãos que escreveram e que afloraram
Sentimentos infinitos de doçura
As mãos, as minhas mãos que me encantavam
Na arte que faziam e na beleza
São hoje uma amostra do que valho
Aproxima-me da noite a natureza…”
O fim foi como quase sempre. Uma coisa e depois outra. Foi decaindo, mas aguentando-se. Só conseguia andar usando um andarilho, mas ainda conduzia e vivia na sua própria casa. Até que um dia, caiu sozinha. E já não andou nem conduziu mais. E foi internada na Ortopedia.
Sempre que eu estava de urgência, punha um lembrete no telemóvel e ia vê-la. Ela ficava tão contente! Dizia sempre que ficava tão feliz por me ver. Houve uma ou outra urgência em que a não fui ver. Se me tivesse esforçado mais, teria conseguido. Mas não o fiz. Não há pior remorso do que o das boas acções não concretizadas.
A sua irmã tinha morrido aos 42 anos, deixando um único filho, o seu sobrinho, que ela adorava e que a estimava também. Numa das minhas visitas, conheci-o, bem como à sua filha. Nesse dia, em que no quarto do hospital estava a Ana Francisca, o sobrinho e a sua filha, a Ana Francisca disse “somos os três que restamos do mesmo sangue, somos só nós”.
E numa altura em só estávamos eu e ela, disse-me baixinho, ao ouvido, quando me fui despedir com um beijinho na sua testa: “Eu já não devo durar muito, doutor”.
Na urgência seguinte, não consegui que abrisse os olhos quando a fui ver. Fui falar com as enfermeiras para saber o que se passava, e disseram-me que há alguns dias que estava mais prostrada, quase sempre inconsciente. Tentei transmitir-lhes quem ela era, o que eu sabia dela, e os motivos da minha admiração por aquela senhora. Mas tive que sair de repente. A voz falhou-me. E os olhos também.
Morreu a Ana Francisca. Quando a conheci eu ainda não sabia, mas já ela era heroína há muito tempo.
“Subtilmente se instalam
Sem licença me pedir
Mágoas que fundo me calam
E falam de … desistir
Desistir? eu que sem tréguas
Batalhei a vida inteira!
Este desfile de mágoas
Só pode ser brincadeira…”