Angola está a curar as profundas feridas da sua História recente, mas isso só será possível se se conseguir apurar a verdade. O chamado “golpe de Nito Alves”, que teve lugar a 27 de Maio de 1977, é uma dessas feridas que só poderá ser sarada quando os estudiosos e os angolanos em geral tiverem acesso aos arquivos do MPLA. E esta poderá ser uma grande oportunidade para João Lourenço, Presidente de Angola, dar mais provas da sua nova política de transparência.
Quando escrevi um livro sobre esta tema: “’Golpe Nito Alves’ e outros momentos da história de Angola vistos do Kremlin” compreendi que havia, e continua a haver, muito coisa mal contada ou mesmo por contar sobre esta tragédia. Trata-se de um terreno pantanoso, principalmente quando nos tentam esconder pistas ou conduzir para becos sem saída.
Os vencedores ditaram a sua versão dos factos e, durante muitos anos, foi verdade oficial e única em Angola. Nito Alves e outros revoltosos eram “perigosos esquerdistas” que tentaram, pela via das armas, derrubar o regime de Agostinho Neto, grande líder “centrista”.
E, como acontece nestas ocasiões, é sempre necessária uma “mãozinha externa”, neste caso a União Soviética. E uma das explicações para tal ingerência parecia estar à vista: pouco tempo antes do “golpe” Nito Alves tinha representado o Movimento Popular de Libertação de Angola num congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) e, por conseguinte, era pessoa de confiança dos camaradas de Moscovo.
Esta tese perde toda a lógica se constatarmos que não era o Partido Comunista da União Soviética que decidia quem iria representar o partido “a” ou “b” no seu congresso, mas eram as forças políticas convidadas que decidiam quem as iriam representar. Normalmente, era o líder máximo que representava a sua força política no órgão supremo do PCUS mas, por vezes, a situação política obrigava a fazer alterações.
Por isso, o envio de Nito Alves a Moscovo pode ter sido uma manobra, realizada por Agostinho Neto e companhia, para comprometer um dos mais carismáticos líderes do MPLA. Também não se pode pôr de lado a possibilidade de Neto recear ser derrubado da liderança do seu partido durante uma ausência no estrangeiro.
Os documentos de arquivos e memórias já publicados na Rússia permitem-nos concluir que havia uma grande desconfiança mútua entre a direcção comunista soviética e Agostinho Neto, desconfiança essa que vinha ainda do tempo da guerra contra a presença portuguesa em Angola.
Parece também ser evidente que os soviéticos não estavam interessados em desestabilizar ainda mais a situação em Angola, na altura mergulhada numa sangrenta guerra civil.
O confronto entre Agostinho Neto e Nito Alves faz lembrar as purgas que ocorrem nas cúpulas dos regimes totalitários, sejam de extrema-esquerda ou de extrema-direita. Essas purgas só terminam quando dentro do partido deixa de haver oposições reais ou imaginárias e o poder se concentra na mão de um ditador.
Será também de extrema importância analisar friamente as ideias defendidas por Nito Alves e os seus apoiantes, para que fique bem claro o que estava em jogo nos corredores do poder em Angola.
Só poderemos responder a estas e outras perguntas se tivermos acesso a documentos da altura. Não vale a pena esperar a abertura dos arquivos cubanos ou soviéticos, pois a política de Havana e Moscovo face à transparência histórica é bem conhecida. O mesmo se pode dizer do arquivo do Partido Comunista Português que nos poderia ajudar a esclarecer o verdadeiro papel desta força política nos acontecimentos em Angola. Por exemplo, o abandono de alguns dos seus destacados militantes às mãos dos carrascos.
Por isso, resta-nos os arquivos angolanos e as memórias dos participantes nos acontecimentos. Quanto a estes últimos, muitos ainda estão vivos e certamente não quererão que se saiba da sua actividade como torturadores ou carrascos.
Quanto aos arquivos, muito, se não tudo, depende da vontade do Presidente João Lourenço querer ou não responder aos pedidos de explicações dos filhos e netos das vítimas da repressão que se seguiu de imediato ao 27 de Maio de 1977.
Passaram-se 42 anos após a tragédia, mas sem a clarificação dos acontecimentos não poderá haver reconciliação nacional.
Prova de que tal é possível é a decisão das autoridades angolanas de entregar os restos mortais de Jonas Savimbi à família e à UNITA para que encontrem a sua última morada na aldeia de Lopitanga, município do Andulo, província do Bié. Se os actuais dirigentes do MPLA conseguem dar passos desses em relação ao seu mais feroz adversário, porque não fazer o mesmo em relação aos seus ex-camaradas?