1. Lê-se nos jornais, com origem na Agência Lusa, que António Costa, o Primeiro Ministro do Governo da República Portuguesa (que jurou cumprir a Constituição quando tomou posse), dirigiu, na Assembleia da República, ao deputado Fernando Negrão, líder parlamentar do maior partido na Assembleia da República, o PSD, esta tirada parlamentar: «Há uma coisa que posso garantir: na origem do SNS não está o PSD, porque o PSD votou contra o SNS. É por isso que é muito importante que a Lei de Bases da Saúde em discussão na Assembleia da República seja aprovada, não por uma maioria qualquer, mas pela maioria que criou, apoiou, defendeu e desenvolveu o SNS e nessa maioria Vossa Excelência não se inclui».
2. Não podemos abstrair da falta de rigor dos pressupostos históricos e políticos da tese de António Costa. Não, o SNS não é propriedade, nem intelectual nem política, da esquerda parlamentar. Não, o «Serviço Nacional de Saúde” não é a mesma coisa que a “Lei de Bases da Saúde”. Não, a actual Lei de Bases da Saúde não foi aprovada pela esquerda exclusiva proprietária do SNS. A Lei de Bases da Saúde que está em vigor, a Lei n.º 48/90, foi publicada no Diário da República com as assinaturas do Presidente da Assembleia da República, Vítor Crespo (PSD), do Presidente da República Mário Soares (PS) e do Primeiro Ministro Cavaco Silva (PSD). E tem estado em vigor vai para 29 anos.
3. É certo que o alegado «pai» do Serviço Nacional de Saúde, António Arnaud, esteve na origem da criação do Serviço Nacional de Saúde. É certo que ele era, ao tempo, um histórico socialista (mas não era um comunista nem um bloquista). Além disso, é do conhecimento público que António Arnaud também pertencia à Maçonaria, e que antes de lançar e promover esta iniciativa (socialista) se aconselhou expressamente com a Maçonaria, que terá apoiado fortemente a ideia. Com base nesta genealogia, teríamos que o SNS de António Arnaud seria (de origem) socialista e maçónica, mas não de toda a (extrema) esquerda. Se depois a extrema esquerda apoiou este projecto, o mesmo se pode dizer da direita.
4. Mas acresce uma coisa muito importante. Já que falamos de história, falemos de história. É que, antes deste nosso moderno Serviço Nacional de Saúde, já havia um anterior Serviço Social de Saúde (um SSS), com a velha idade de 500 anos. A «mãe» foi a Igreja Católica, e este serviço foi secularmente prestado pelas Misericórdias e outras instituições de assistência, numa rede que cobriu todo o País, e atingiu quase 400 Misericórdias. Era insuficiente. Pois era. Como ainda hoje o SNS é insuficiente. Mas na medida das forças económicas e financeiras do tempo, serviu igualmente os portugueses, por cinco séculos, com uma generosa solidariedade que pede meças ao burocratismo actual. Não pertencia ao Estado, não era político, nem era dependente das finanças públicas, embora pudesse ter recebido ajudas aliás justificadas. Mas existiu e funcionou, institucionalmente e de facto.
5. Então hoje, e se por momentos olharmos para as realidades sociais do povo português (para a sua vida e as suas necessidades, históricas e actuais), em vez de olharmos para a contabilidade partidária, o que António Costa merecia é que se lhe respondesse, parafraseando-o, assim: «Há uma coisa que posso garantir: na origem do [Serviço Social de Saúde das Misericórdias], não está [a esquerda partidária actual]. É por isso que é muito importante que a Lei de Bases da Saúde em discussão na Assembleia da República seja aprovada, não por uma maioria qualquer, mas pela maioria que criou, apoiou, defendeu e desenvolveu o [pentassecular Serviço Social de Saúde] e nessa maioria Vossa Excelência não se inclui”».
5. Tem toda a razão o Presidente da República, enquanto Presidente de todos os portugueses eleito com base num programa político não partidário, em não subscrever uma lei de bases, marcada assim com uma intencional exclusão ideológica e partidária. Independentemente da matéria em discussão, independentemente da questão que está em causa na Terceira República Portuguesa, desejar excluir da aprovação de uma “lei de bases” a enorme minoria parlamentar que inclui o maior partido parlamentar que ganhou as últimas eleições, é o grau zero da democracia.