1. Politicamente, em matéria de iniciativa e de gestão na República (na “coisa pública”), nós, os cidadãos, somos supletivos, excepcionais e temporários? Quem não quiser ser supletivo, tem de ser funcionário público? Pelos vistos, é esta a democracia em que se baseia a nova lei de bases da saúde. Mas essa democracia não coincide com a que está definida na (nossa) Constituição. Deve ser uma “democracia de opinião”, de acordo com o conceito subjectivo de Jerónimo de Sousa.

2. Segundo é noticiado pela comunicação social, o Dr. António Costa, que preside ao actual Governo do PS apoiado pela maioria parlamentar formada pelo PS e pelos partidos de extrema esquerda, propõe um regime jurídico de monopólio de Estado na nova lei de bases da saúde, apenas admitindo a participação de entidades cidadãs a título supletivo, excepcional e temporário — quase esgotando os adjectivos do dicionário para humilhar a “democracia participativa” dos cidadãos, tenham estes legítimos fins profissionais, tenham até fins gratuitos de solidariedade social. E isto no seguimento da proposta de António Arnaud e João Semedo, que precisamente invocaram expressamente a necessidade da defesa da democracia.

3. De facto, essa argumentação ficou bem expressa no título do livro que essas duas personalidades políticas publicaram: «Uma nova Lei de Bases da Saúde para defender a democracia». E quando a comunicação social noticiou a apresentação pública deste livro, logo esclareceu que, nesse livro, António Arnaut e João Semedo defendiam a exclusão das parcerias público-privadas do Serviço Nacional de Saúde». Cá temos: defender a democracia… defendendo a exclusão da participação dos cidadãos.

4. Mas então — é forçoso perguntar — que democracia é essa? Porque a democracia definida na Constituição não exclui a iniciativa dos cidadãos. Muito pelo contrário: o nosso Estado de Direito Democrático (que quer dizer Estado sujeito ao direito e à democracia) está aí definido como «visando […] o aprofundamento da democracia participativa». Nestes precisos termos: «A República Portuguesa é um Estado de Direito Democrático, baseado na soberania popular [e não nas maiorias parlamentares], no pluralismo de expressão e organização política democráticas [e não em monopólios de Estado], na separação e interdependência dos poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa».

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5. Portanto (e muito claramente na parte final desta definição constitucional do nosso Estado de Direito Democrático), a Constituição impõe como finalidade a “democracia participativa” dos cidadãos, e não uma democracia de monopólios de Estado que exclua os cidadãos. Aliás, de acordo com o princípio da subsidiariedade do Estado, que está no art. 6.º da Constituição. Contradiz frontalmente a opinião da geringonça sobre a democracia no SNS — porque o projecto da futura lei bases é contra a intervenção dos cidadãos: nem económica, nem social, nem cultural, nem participativa.

6. É nisto que estamos, no domínio nevrálgico dos princípios constitucionais: a actual maioria parlamentar de extrema esquerda não leva a sério os princípios constitucionais da nossa Terceira República. Não dá importância aos princípios, valores e fins constitucionais, que custaram tão grandes debates e esforços políticos a conquistar. É um erro gravíssimo de política, e também de «educação para a cidadania».

7. Pode mesmo ser notado que a nossa Constituição dá muita ênfase à afirmação de princípios. Antes da sua Parte primeira, como se sabe dedicada aos «Direitos e deveres fundamentais», a Constituição abre com um conjunto de normas encimadas pela seguinte rubrica:  «Princípios Fundamentais» — aliás, é sobretudo daqui que se colhe o programa principiológico fundamental para a nossa democracia. Por sua vez, a primeira Parte dedicada aos «direitos e deveres fundamentais» também começa por um título encimado por esta expressão: «Princípios gerais». A Parte segunda da Constituição, dedicada à “Organização económica”, começa igualmente por um Título primeiro, sobre «Princípios gerais». A Parte terceira, sobre a “Organização do Poder Político”, volta a começar por um título primeiro, com a rubrica “Princípios gerais». Finalmente a Parte quarta, sobre a «Garantia e revisão da Constituição», não começa (como todas as anteriores) com um inteiro título sobre princípios; mas abre o seu articulado com esta norma: «São inconstitucionais as normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nela consignados» (n.º 1 do art. 277.º).

8. Perante esta insistente e expressiva ênfase de princípios fundamentais e gerais da nossa Constituição, não é admissível programar e executar o Estado social sem atender e procurar cumprir substancialmente esses princípios. Assim, quando (por exemplo neste caso da nova lei de bases da saúde) se invoca a democracia, o que se deveria invocar não é uma democracia “de opinião”, mas a democracia que está definida na Constituição. Isto é: a «democracia económica, social e cultural, em aprofundamento da democracia participativa».

9. E, além da fidelidade constitucional, qual seria então o resultado prático? Segundo a avaliação do Presidente da APAH, Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, numa entrevista pública de há poucos dias, esta discussão da lei de bases não traz nada de novo nem de concreto; e não resolve os problemas dos utentes. Quanto à experiência das PPPs, diz o mesmo Presidente que ela teve bons resultados. Fala um profissional qualificado, insuspeito, com longa experiência e eleito pelos seus pares. Devemos antes acreditar nos políticos da geringonça?

10. Mas o que quererão estes políticos? A nossa esquerda partidária está sempre em favor da iniciativa “oficial” do Estado e contra a “livre iniciativa” dos cidadãos. E querem convencer os cidadãos de que a melhor defesa do bem comum é exactamente assim, através de um Estado providência centralista. O resultado desta estratégia política é que os cidadãos ficam cada vez mais passivos e dependentes dos serviços monopolistas do Estado, portanto sem escolhas. Enquanto eles, os partidos políticos centralistas, ficam cada vez com mais poderes e lugares no Estado social monopolista; e com mais escolhas.

A conclusão é que só eles ganham. Porque, o que dão aos cidadãos não sai do seu bolso; vão buscá-lo às taxas e aos impostos pagos pelos próprios cidadãos. Enquanto que o poder que acumulam é todo ele à custa da perda de poder dos cidadãos, de acordo com a teoria da soma zero. Isto é: se o Estado tem mais poder, então esse mais poder é precisamente igual ao menos poder dos cidadãos, porque a soma total do poder é sempre a mesma.

11. Grande negócio, este, não é? Será por isso que os políticos da geringonça pensam que a democracia não passa de uma opinião?…