Foi com a compaixão que Jesus sentia por estas pessoas que li o suplemento do Público, de 11 de Abril passado, dedicado aos “trabalhadores do sexo”.

Chamou-me a atenção que, nessa longa reportagem, em vez de se lamentar uma actividade tão degradante, se pretenda institucionalizá-la, chamando ‘trabalhadores do sexo’ às pessoas que vendem o seu corpo para viver. Ora, uma tão indigna prática não tem, nem pode ter, o estatuto de ofício, como também nunca foi, como erradamente se diz, a mais antiga profissão do mundo. Não é admissível considerar como meros utentes, ou clientes, os que se aproveitam da fragilidade destes ‘trabalhadores’, e também não é lícito branquear um tal ‘negócio’, ao extremo de considerar os proxenetas como ‘empresários’.

A prostituição forçada é criminosa, mas que dizer se livremente exercida? Na verdade, não consta que ninguém se prostitua de livre vontade e, sendo uma prática contrária à dignidade humana – como a escravatura, a mutilação genital, etc. – nem o próprio a pode legitimar, porque a ninguém é lícito abdicar da sua vida e integridade, liberdade e dignidade, deixando-se matar ou mutilar, escravizar ou prostituir.

«Aqui há pouco tempo – escreveu Gilbert K. Chesterton, nos Disparates do mundo (Aletheia, 2013) – houve uns médicos e outras pessoas (…) que deram ordem para se cortar o cabelo às meninas pequenas; refiro-me obviamente às filhas dos pobres. Entre as filhas dos ricos vigoram muitos hábitos pouco saudáveis, mas os médicos hão-de levar muito tempo a dar-lhes ordens do mesmo teor. Ora, a justificação para esta intromissão específica era que os pobres são obrigados a viverem em submundos de miséria tão fedorenta e sufocante que não podem ter cabelo, porque acabam sempre por ter piolhos. Por esse motivo, os médicos decidiram abolir o cabelo. Dá a impressão de que nunca lhes passou pela cabeça abolir os piolhos. E, no entanto, era uma coisa que se podia fazer. Como acontece na maior parte das discussões modernas, aquilo que não se refere é o elemento essencial da discussão. É óbvio para qualquer cristão – ou seja, para qualquer pessoa livre – que, se se aplica uma medida coerciva à filha de um cocheiro, se deve aplicar a mesma medida à filha de um ministro.”   

Em relação aos piolhos, à prostituição e à eutanásia, há sempre duas opções possíveis: a humanista e a colectivista. Esta última corta os cabelos às meninas pobres, institucionaliza os ‘trabalhadores do sexo’ e mata os doentes terminais, porque é, respectivamente, a solução mais higiénica, o procedimento mais progressista e, ainda, a forma mais digna de matar os que se encontram em sofrimento intolerável.

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A resposta humanista e cristã é a diametralmente oposta. Procura dar às crianças pobres as condições que lhes permitam não ter piolhos, como se faz nas inumeráveis instituições que a Igreja católica promove em todo o mundo. Garante meios de subsistência às mulheres que se vêem obrigadas a vender o seu corpo, como fez Santa Maria Micaela, uma aristocrata espanhola que não só se desfez da sua fortuna para ajudar quem tinha caído na prostituição e dela se queria libertar, como fundou uma ordem religiosa com este fim. Proporciona aos doentes terminais os cuidados a que têm direito e que lhes asseguram um fim de vida digno, como fazem, com os mais pobres dos pobres, as missionárias da caridade de Santa Teresa de Calcutá.

Com Chesterton, é preciso “afirmar que temos de começar tudo de novo, e depressa, e que temos de começar na outra extremidade. E começo pelo cabelo das pequenitas, porque sei que é uma coisa boa. Há coisas que são perversas, mas o orgulho de uma mãe na beleza da sua filha é uma coisa boa. É uma daquelas ternuras absolutas (…). Se há coisas que vão contra isto, são essas coisas que têm de ser destruídas. Se os senhorios, as leis, as ciências vão contra isto, os senhorios, as leis e as ciências têm de ser destruídos. Pelo cabelo ruivo de uma miudita, eu pegarei fogo à civilização moderna. Porque as pequenas devem ter o cabelo comprido e, portanto, devem tê-lo lavado; e porque devem ter o cabelo lavado, têm de ter uma casa limpa, têm de ter em casa uma mãe com tempo para a limpar; e porque têm de ter uma mãe com tempo livre, não podem ter um senhorio usurário; e porque não pode haver senhorios usurários, a propriedade tem de ser redistribuída; e porque a propriedade tem de ser redistribuída, tem de haver uma revolução!”

Uma revolução?! Sim, porque não há outra solução “quando uma tirania de crápulas esmaga os homens e os enterra na lama.” Porquê? Porque, para estes modernos déspotas, “se por acaso as crianças pobres começassem a gritar com dores de dentes (…), seria fácil arrancar os dentes aos pobres; se estes aparecessem com as unhas sujas, arrancavam-se-lhes as unhas; e se assoassem o nariz de forma indecente, cortava-se-lhes o nariz. No final do processo, a aparência dos nossos concidadãos menos abastados ficaria bastante simplificada. Ora, nada disto é mais absurdo do que o simples facto de um médico poder entrar em casa de um homem livre, cuja filha pode ter o cabelo tão limpo como as flores da Primavera, e ordenar-lhe que o corte. Dá a impressão de que nunca passou pela cabeça destas pessoas que o problema dos piolhos, nos bairros de lata, não reside nos cabelos, mas nos bairros de lata.

Sim, esta é a revolução que faz falta. Uma revolução pela inviolabilidade da vida humana, pela beleza imensa do cabelo de uma menina qualquer, pela justiça, pela habitação, pelo salário justo, pela liberdade de educação, pela grandeza e dignidade da mulher, chamada a ser santuário da vida humana. É urgente lançar fogo à civilização que aposta em matar, em vez de curar; se empenha em abusar e cortar os cabelos das meninas pobres, em vez de as respeitar e promover; se propõe reduzir a mulher a um objecto de comércio sexual, em vez de reconhecer que “ela é a imagem sagrada e humana” de Deus.

Post scriptum. Se o título desta crónica levar alguém a crer que sou comunista, ou anarquista, recordo que, por muito menos, já fui acusado de ser simpatizante da extrema-direita, numa recente reportagem da SIC, em que defendi, como sempre faço, o Papa Francisco (que a extrema-direita detesta), e reagi contra a eutanásia, como é doutrina da Igreja (e, pelos vistos, também do PCP). Que os comunistas me achem fascista, e os fascistas me considerem comunista é, afinal, o preço que tenho de pagar pela minha liberdade e independência: mais vale parecer fascista e comunista, sem o ser – ao contrário do que alguém disse, nem tudo o que parece, é – do que ceder aos extremismos, ou à ditadura do pensamento politicamente correcto.