Não o víamos nas feiras literárias, nem sabíamos o que pensava da guerra no Médio Oriente. Era apenas o maior escritor português em actividade. No fim, passou pelos jornais por causa de não deixar que os seus livros de poesia tivessem mais do que uma edição. Mas não é disso que importa falar. No ano passado, fechou A Morte sem Mestre com um poema sobre uma bilha de gás. Começa com o verso “a última bilha de gás durou dois meses e três dias”. É isto poesia? A seguir vem escrito: “com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado”. Só agora é que é poesia?

Não me perguntem sobre o que é o poema da bilha de gás. Sobretudo, não me façam falar de metáforas. A poesia, antigamente, queria dizer alguma coisa. Era circunstancial. Faziam-se versos para ocasiões. Em Inglaterra, ainda existem os poetas laureados. Isso implicava que os poemas tivessem sempre uma referência, uma explicação: o sentimento tinha sido sentido, o céu era azul porque era azul, tinha havido um problema com o gás. A crítica universitária, depois, descobriu outra maneira de falar de poesia: a intertextualidade. O que interessava agora era a rede de palavras, como o amor, o sangue, a morte, que liga um poema aos outros poemas. Como se a poesia fosse sobretudo citação de poesia, o que faria da bilha de gás de Herberto Helder uma reencarnação gasosa da prosaica galinha de Camões (“Sete galinhas e meia/prometeu o senhor de Cascais…”). Compreender Herberto Helder seria, deste ponto de vista, situá-lo no cânone, filiá-lo, compará-lo, contrapô-lo.

O resultado de todas estas tentativas de compreender a poesia foi uma certa maneira de fazer poesia, de modo que toda a poesia portuguesa de hoje, com duas ou três excepções (uma delas, para ter nome, é Adília Lopes), parece escrita pelo mesmo autor: escrever poesia é escrever à maneira de um poeta. Herberto Hélder não é isso. A prova é a bilha de gás. Há aqui uma desenvoltura a que nenhum poeta de doutoramento se atreveria.

No fundo, sempre quisemos que a poesia documentasse alguma coisa. O último poema de A Morte sem Mestre (e depois dos Poemas Completos, de Outubro de 2014) pode ser lido como um poema dos dias de hoje. Autor de 84 anos, num país envelhecido, em crise, a meditar sobre a morte e o preço da bilha de gás. Em suma, um documento. Ou pode ser lido como parte da obra de Herberto Helder, mais um capítulo da sua poética, ou seja, um outro tipo de documento – desta vez literário. Ou – e deixem-me sugerir isso — pode ainda ser lido como uma série de frases que, seja sobre o que forem, nos fazem pensar nelas próprias, e perguntar “o que é que isto quer dizer?”, ao contrário do que acontece com quase tudo o que ouvimos e lemos, e que partimos do princípio de que já sabemos. O que é isso da bilha de gás?

Deixo para outros a tarefa de recordar que ele um dia parece ter acreditado numa alquimia das palavras, e que isso terá tido que ver com uma época (anos 1960, descoberta da “linguagem”, etc.). Vou apenas dizer que, no fundo, a poesia, ao nível praticado por Herberto Helder, é aquilo que lemos devagar e ouvimos com atenção, e nunca em diagonal, como lemos o artigo do jornal, ou intermitentemente, como ouvimos o discurso ou o nosso amigo. O que é que distingue a poesia da artigo do jornal, do discurso, da piada de café? Noutros tempos, havia a estrutura, as regras, que convidavam à apreciação do engenho. Agora há ainda a página, a arrumação em versos. Mas é outra coisa: o valor desmedido que subitamente têm as palavras, a dicção, uma bilha de gás… Mas esta poesia abre-nos ainda outra hipótese: ler tudo como poesia. Porque é que o discurso ou o editorial não podem ser ouvidos e lidos como versos de Herberto Hélder? Isto é, com estranheza e infinita atenção. Devíamos talvez aprender novamente a ler com Herberto Helder.

Nesse grande poema que começa “a minha cabeça estremece com todo o esquecimento”, há este verso: “eu quero dizer como tudo é outra coisa”. É isso. É isso que importa dizer, é isso que importa ouvir. É isso a poesia, é isso Herberto Helder.

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