Como terá sido o jantar em casa daquela família? O lugar vazio. A sopa fria. O silêncio ominoso interrompido pelo toque do telemóvel. O sobressalto. Não consigo imaginar a reacção da mulher ao ser informada que o seu marido sofrera um grave acidente na A6 e que, como trágica consequência, chegaria atrasado, pois ainda teria de passar pelo ministério para recolher uns documentos. Pobre alma. O que terá feito às pataniscas? Guardou no frigorífico? E com o arroz malandrinho? No dia seguinte já estaria espapaçado. Eis como, num instante fatídico, se desgraça uma refeição.

“Aquilo que não desejo a ninguém é ver-se envolvido, mesmo que na qualidade de passageiro, numa situação tão dramática como esta”, disse Eduardo Cabrita. Percebo-o perfeitamente, na qualidade de ser desprezível. É que a vítima mortal, na sua qualidade de defunto, se ainda está envolvida em alguma coisa, é apenas num saco de plástico. Já não tem preocupações. Enquanto Cabrita, agora na qualidade de coitadinho, sente-se muito tristonho. Sobreviveu para ser confrontado com a maledicência das pessoas que, na qualidade de cidadãs interessadas, têm o desplante de perguntar coisas como “porque é que o comunicado do MAI, na qualidade de mensagem oficial do Estado, mente sobre a sinalização?” ou “na qualidade de aríete, a que velocidade circulava o carro?” Cabrita merece um abraço. E um pedido de desculpas póstumo, que só não recebe por patente má vontade.

É óbvio que Eduardo Cabrita não tem culpa do acidente. Não era ele que ia a conduzir, ocupava apenas o lugar do borrifa no morto. Ninguém lhe pode levar a mal a falta de marcas de travagem na estrada. O que as pessoas estranham é a falta de marcas de travagem nas cuecas de Cabrita. Isso, sim. O seu carro passa uma pessoa a ferro e Eduardo Cabrita nem vacila, mantém o controle absoluto sobre a situação e sobre o esfíncter. Está-se a marimbar para o cadáver. Não há vestígios de preocupação. Nem na roupa interior, nem no comunicado oficial. Basta lê-lo e reparar na atitude de Cabrita para perceber que o interesse dele é culpar o morto. Por isso insinua que a vítima foi negligente, apesar de decorrer o inquérito e ainda não estarem apuradas as circunstâncias do desastre – se bem que, em sua defesa, se há especialista em negligência profissional, é Eduardo Cabrita.

No comunicado afirma-se que os trabalhos não estavam sinalizados, o que já foi desmentido pela Brisa. É possível que tenham ambos razão: havia sinalização, mas Cabrita não a viu. Quem acompanha a sua carreira no Governo sabe que Cabrita tem dificuldade em ver sinais. Mesmo os mais óbvios. Daí, aliás, ainda ter carreira no Governo.

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Com tanta vontade em descartar-se das responsabilidades, se tiver sido Cabrita a desenhar o esquisso do acidente para a seguradora, de certeza que é um escroqui.

Em Portugal, sempre que ocorre uma tragédia pública com mortos, seja um incêndio ou uma estrada que cai, há políticos que começam logo a tremer. Sabem que vão ser enxovalhados nos jornais, alvos de acusações infames. Não, não se trata dos políticos que tutelam o sector, apontados como institucionalmente responsáveis. Trata-se dos políticos da oposição, que serão acusados de usarem a morte para atacar o Governo. O chamado aproveitamento político de tragédia. Desta vez, porém, o que salta à vista não é o aproveitamento político de tragédia, é o aproveitamento trágico de político: quando António Costa insiste em ir ao caixote reciclar o seu amigo Cabrita no Governo, está a aproveitar tragicamente um político.

Mas o PM conhece a peça. Sabe que Eduardo Cabrita representa um risco e faz tudo para minorá-lo. Por isso é que decretou o recolher obrigatório entre as 23 horas e as 5 horas. Ao passarem menos tempo na rua, os Portugueses não têm tantas oportunidades de serem atropelados por Eduardo Cabrita e o seu carro de traficante. (Para que conste, não acho que haja problema em Cabrita utilizar um carro apreendido, só porque pertence a um delinquente. O proprietário do carro não influencia o feitio do passageiro. Mas, só por curiosidade, será que, caso Cabrita andasse de batmobile, também se punha a combater o crime em Gotham?)

Entretanto, Cabrita já avisou que não se demite. Afirma que o seu mandato correspondeu “aos melhores quatro anos de indicadores de segurança” que já se viram em Portugal. Está a ser modesto. Só refere os indicadores e omite os dedos médios. É que também se tem fartado de os mostrar aos Portugueses. Golas anti-fumo? Toma lá um dedo médio. SIRESP escangalhado? Toma outro. Morte de Ihor Homenyuk? Outro. Festejos do Sporting? Ainda outro. Balbúrdia no Zmar? Mais um pirete. Imigrantes em Caxias? Dedo médio no ar. Com tantos manguitos, isto já não é um membro do Governo, é um hooligan numa claque. O ministro Cabrita, na qualidade de pessoa, não tem qualidade de pessoa.