Não fiquei surpreendido com a vitória de Donald Trump nas eleições americanas. Depois de analisar, nas semanas anteriores ao ato eleitoral, vários gráficos referentes à realidade laboral, educacional e étnica dos Estados Unidos, percebi que, para lá do ruído comunicacional e das sondagens, havia que fazer contas simples a partir de uma pergunta básica: o que quer a maioria dos eleitores americanos? Parece que esta pergunta, aplicável a qualquer democracia – o que quer a maioria? – tem sido diminuída, por agendas que, essencialmente, perguntam: o que querem as minorias?

Numa regra aritmética simples, poderá perceber-se que minoria, em termos quantitativos, é menos que maioria. Tem-se procurado superar este fosso quantitativo através de um argumento qualitativo – o da superioridade moral de certas minorias. A comunicação social, nas democracias ocidentais, tem dado ascendente a grupos académicos e culturais que representam minorias. É mau dar voz às minorias? Evidentemente que não. Todavia, há uma outra questão, tão importante como essa: não é preciso dar voz às maiorias, nos mesmos meios, com o mesmo destaque?

A presunção da superioridade moral de certas minorias face a maiorias, nas últimas décadas, criou um ambiente de ressentimento pessoal e social.

A maioria, não é académica e culta. A maioria, não tem um estatuto económico e social estável e reconhecido nos restaurantes e bares chiques, nas editoras da moda ou nas salas de conferências. A maioria, não fez cursos brilhantes, não tem acesso privilegiado a circuitos de poder formal ou informal, não é rica, não é cronista, jornalista, político, cientista, influencer ou comentador de televisão.

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A maioria, ocupa muito do seu tempo e atenção a resolver problemas básicos, como pagar empréstimos bancários ou rendas para habitação própria, garantir os meios para a educação dos filhos, enfrentar intermináveis listas de espera em centros de saúde e hospitais, tomar transportes públicos para cumprir locais e horários de trabalho, amiúde, com trajetos longos e que ocupam parte importante da jornada diária. A maioria, tem de encontrar soluções para suportar custos com os mais velhos ou segurar os mais novos com dificuldade de entrar no mercado de trabalho e ter a primeira habitação. A maioria, tem de gerir com muito rigor as idas ao supermercado e o equilíbrio entre preço dos alimentos e qualidade alimentar. A maioria, são trabalhadores por conta de outrem, funcionários públicos de base ou pequenos empresários. É assim nos Estados Unidos e é também assim em Portugal.

No que respeita a eleições, a maioria dos eleitores atuais está mais preocupada em saber quem são os políticos que lhes prometem duas coisas: melhores salários e mais segurança.

Todavia, o que a minoria bem-pensante tem tomado como mote para o debate eleitoral é a defesa dos direitos de certas minorias (não de todas as minorias), a desconstrução dos modelos tradicionais de família e dos valores que lhes estão associados, a desconstrução da ideia de masculino e feminino e dos valores que lhes estão associados.

Tudo isso, em defesa dos direitos de certas minorias, nomeadamente, de acordo com uma ideologia de género ou em defesa de um novo modelo de sociedade que se quer impor, com novas formas de censura e novos tipos de sacerdotes.

Há, certamente, muitos ideais positivos a considerar, a defender, a respeitar, a promover, no que respeita à voz das minorias. Minorias étnicas, minorias de género, minorias políticas. Ou aquelas minorias que amiúde são esquecidas no discurso da Esquerda caviar: os pobres, os deficientes, as crianças e jovens carentes de proteção social e educação, os idosos sem apoio familiar.

Coisa diferente do apoio necessário às minorias é querer impor às maiorias as agendas de certas minorias, em detrimento das agendas maioritárias.

Durante as últimas décadas – aquelas em que o consórcio formal ou informal entre políticos, jornalistas, cronistas e académicos defensores de certas agendas minoritárias dominaram o espaço público das democracias – as maiorias sentiram-se cercadas, humilhadas, revoltadas. Porque foram cercadas e humilhadas. Cercadas por imposições normativas com as quais não concordam, humilhadas por serem consideradas atrasadas, face aos desafios do mundo e da sociedade. E sofreram em silêncio a sua revolta, nas suas vidas tantas vezes social e economicamente deprimidas.

O aparecimento das redes digitais e de líderes populistas foi, paulatinamente, alterando o equilíbrio dos pratos da balança e deu voz à revolta. E nos últimos dez anos, a democracia recuou no mundo e o autoritarismo aumentou. Porquê?

Uma das razões pode ser a incapacidade das democracias de proteger as agendas das maiorias através de líderes com origem e pertença a partidos tradicionais e no quadro do atual sistema institucional. Outra das razões pode ser a perceção, oportunista, por parte de tendências autoritárias e populistas, da existência desse enorme espaço eleitoral deixado vazio.

O que querem as maiorias?

Claro que a resposta efetiva àquilo que querem as maiorias é bem mais complexa do que a promessa de lhes dar o que querem (e nem sempre a vontade das maiorias corresponde ao superior interesse da comunidade).

Para os projetos de poder, resolver os problemas das maiorias ou corresponder às suas expetativas é um segundo passo a cuidar, depois da conquista do poder. Promete-se. Depois, logo se vê.

E neste processo, não está em causa qual é a agenda moral mais próxima de um valor moral superior. Está em causa, simplesmente, qual é a agenda que prevalece.

Antes dos ciclos eleitorais deste ano, escrevi que os excessos das agendas de género iriam promover reações sociais e alterações de poder que fariam diminuir os direitos e liberdades das minorias – um efeito de elástico: quando se estica muito, volta para trás. Escrevi que há um fator essencial que estava a ser mal equacionado – o fator tempo curto, médio e longo. As mudanças de pensamento, valores e comportamento social não se fazem por decreto – levam tempo e são complexas. As alterações de quadros morais e o acolhimento de novas perspetivas sobre nós e sobre os outros (mesmo quando merecem ser acolhidas) não se obtêm por imposição arrogante ou humilhação. Estas atitudes provocam comportamentos de defesa e revanchismo.

Estão, agora, a colher-se os frutos desta sementeira de arrogância de certas esquerdas e minorias colocadas no altar da comunicação e do poder.

Nos Estados Unidos, perante um homem branco, machista, securitário, protecionista, isolacionista, agressivo, demagogo, messiânico, conservador, e uma mulher de cor, feminista, aberta ao mundo, idealista, identitária, liberal, a maioria, preferiu o primeiro.

Estamos a falar de um oportunista, mentiroso, defensor do lobby das petrolíferas, manipulador das redes sociais, desonesto nos negócios, supremacista branco, abusador de mulheres? Provavelmente. O que ele prometeu aos eleitores, sobrepôs-se a tudo isso? Como vimos, sim.  Venceu a mensagem pragmática, protecionista e conservadora, perdeu o pensamento da esquerda que se afastou da classe média e dos seus interesses e preocupações. Agora, que se começam a conhecer bizarras e preocupantes escolhas para o governo americano que toma posse no fim do próximo mês de Janeiro, estamos na expetativa do que vai ser uma liderança, que se prevê autoritária e perigosa para a Europa.

Atendendo às fortes interdependências, um novo tempo começa nas democracias europeias.

No nosso continente, a responsabilidade dos políticos idealistas, honestos e defensores de valores universais, incluindo, a defesa das minorias, é grande.

Para reconstruir a coesão social. Repor a “honra” das maiorias. Estimular a criação de riqueza. Gerir a sanidade das contas públicas. Aumentar os gastos com defesa e segurança  – a defesa militar e também aquela que respeita à segurança no espaço público físico e digital. Enfrentar ameaças várias de cancelamento e censura e assegurar a liberdade de expressão. A tarefa é difícil e não tem resultados assegurados. Exige visão, valores, inteligência, determinação, capacidade de ação.

Espera-se que os nossos líderes levem a bom porto esta missão gigantesca.

Há um aforismo, que se pensa ter origens no século XII, usado por Isaac Newton no século XVII, a propósito das suas descobertas e sucessos: ”Se eu vi mais longe, foi por me levantar sobre os ombros de gigantes.”

A maioria de nós, não somos gigantes, mesmo quando temos tarefas gigantescas pela frente. Mas não estamos sozinhos. Há gigantes, na história do mundo, na história da Europa, na história do nosso país. Homens e mulheres que ao longo dos séculos são exemplos de força, de visão, de autoridade, de inspiração, de criatividade. E há outros gigantes – aqueles e aquelas que, todos os dias, fazem o mundo melhor à sua volta, a maior parte das vezes, de forma anónima.

Não ignoremos estes grandes, não nos sintamos esmagados pelo seu peso.

Coloquemo-nos, antes, nos seus ombros, para alargar o horizonte e andar com maior suporte na concretização de grandes desígnios.

Neste 25 de Novembro, data associada à consolidação da democracia portuguesa, há 49 anos atrás, caminhar, saber fazer contas sobre a realidade, é básico.

Não se trata de viver na ditadura das maiorias. Trata-se de respeitar as regras do jogo democrático e olhar em frente, se possível, vendo longe.