Uma casa num bairro histórico de Lisboa. 150 metros quadrados, mais varanda e vista. Cozinha equipada, casas de banho apetitosas, renovada há dez anos. Foi arrendada, já depois da lei Cristas, a uma senhora que lá queria viver com a filha. A renda era adequada ao tamanho da casa, mas ainda dos tempos anteriores à escalada das rendas. Às tantas, a arrendatária deixou de pagar a renda. O senhorio descobriu que saíra da casa e arrendava os quartos a estudantes numa plataforma online – e não pagava a renda.

Não pagar renda e usar o espaço para fim diferente do acordado em contrato permite despejo. Foi o que o senhorio tratou de fazer. Com a agilidade que a lei – mesmo a de 2012 – permite, incluindo manigâncias da arrendatária de despedir advogados e pedir apoio judicial, catorze meses depois de a arrendatária deixar de pagar a renda o senhorio conseguiu compulsoriamente reaver a casa. Como bombom no fim da refeição gostosa, os tribunais declararam o senhorio fiel depositário dos bens da arrendatária até que esta os reclamasse. Depois de o deixar catorze meses sem poder dispor da casa nem receber renda, a lei portuguesa obriga o senhorio a fornecer o serviço de armazém gratuitamente, quiçá com dever de indemnização se algum dos bens se danificar ou extraviar. Delirante, não?

Este caso não é nenhum exercício imaginativo aos limites legais deste nosso tão aprazível retângulo. É um caso real. Não é filho único: há inúmeras pessoas que deliberadamente não pagam renda porque sabem que ficarão gratuitamente nas casas largos meses. Claro que nem todos deixam de pagar a renda por serem propensos à malandragem, mas por constrangimentos financeiros temporários ou permanentes. Em todo o caso, a resposta para estes tem de ser a segurança social, não a caridade compulsiva dos senhorios – afinal este governo de esquerda execra a caridade privada (pelo menos quando voluntária), não é?

Mas não desesperemos: a agremiação governativa sabe bem que melhorias à lei estão em falta. Também que aumentar o número de casas para arrendamento. Neste sentido, o PS faz o óbvio: com as propostas de alteração à lei do arrendamento e da lei de bases da habitação, propõe-se a exterminar o mercado de arrendamento. Não se percebe bem se é um grande amor socialista pela homeopatia – vamos lá provocar a escassez de casas para combater a escassez de casas – se é mesmo uma reforma agrária agora em versão urbana. (Tal como muitos migrantes alentejanos, deixou os campos e veio para a cidade.)

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Primeiro, com a lei do arrendamento, desincentivam os proprietários de arrendar. Depois, com a lei de bases da habitação, entregam-se à ladroagem estatal de tomar imóveis alheios que os proprietários tiveram medo de arrendar, fazem-lhes obras e arrendam-nos a bel prazer, efetivamente expropriando as casas.

As duas propostas de lei são tão desconchavadas que o único comentário pertinente é parafrasear Obélix e declarar ‘estes socialistas estão doidos’.

Qualquer governo que efetivamente queira promover o arrendamento não tem de puxar pela cabeça. Afinal é um mercado que interessa a todos – aos que precisam de casa para viver mas não querem ou não podem comprar, e aos proprietários, para quem um inquilino cumpridor que trate bem da casa é o melhor dos mundos. Nunca fui na cantiga de que toda a gente se virou para o alojamento local: tem de se ter estrutura ou disponibilidade para limpezas e mudanças de hóspedes constantes, além de ser um grande desgaste para os imóveis.

Encurtar os tempos de despejo dos inquilinos incumpridores é uma medida óbvia. Não pode demorar mais de três meses depois da primeira renda em atraso até um senhorio poder reaver a casa. O não pagamento da renda dois meses seguidos deveria dar de imediato a possibilidade de penhorar ordenados ou contas bancárias. O PS, em resposta, quer impedir despejos dos inquilinos incumpridores nos meses de inverno.

Em vez de aumentar a oferta (o que diminuiria as rendas) fazendo entrar as casas com arrendamentos anteriores a 1990 no mercado (fornecendo o estado a solução para quem não tem possibilidades de pagar novas rendas, através de subsídio de rendas, previsto desde 2012, ou disponibilizando casas – a CML tem muito património imobilizado que pode usar para este fim, por exemplo), o PS quer tornar vitalícios mais uma leva de arrendamentos. Diminui-se ainda mais a oferta de casas para arrendar. (A geringonça já havia congelado os contratos anteriores a 1990 por mais cinco anos.) Menos oferta de casas implica pressão para aumento das rendas. Quando um recém-licenciado não conseguir arrendar casa, envie cartão de agradecimento ao PS por ter tornado de pedra e cal arrendamentos existentes.

Dar incentivos fiscais para arrendamentos de longa duração é boa ideia, desde logo porque permite baixar as rendas brutas pagas pelos inquilinos. Estabelecer os prazos em 10 e 20 anos já é de alucinados com tanta noção do país quanto os extraterrestres de fora da Via Láctea. Tem de se diminuir o IRS pago pelos contratos de arrendamento habitacional por 5 anos (7 anos, no máximo dos máximos) para os tais 14% propostos, com crescentes diminuições na taxa de cada vez que se renova o contrato ao mesmo inquilino por 5 anos.

Qualquer pessoa pensante concluiu que se se fizer um contrato por dez anos, a renda inicial que se pede será sempre mais elevada para acautelar os riscos de perder futuras subidas nas rendas novas, as cauções e garantias maiores para acautelar a maior duração do contrato. E por aí adiante.

Poucas vezes vi calamidades legais deste calibre. O objetivo só pode ser exterminar o mercado de arrendamento para depois surripiar as casas aos proprietários. Nada disto resolverá problemas de arrendamento e de subida de rendas, pelo contrário. Assistimos, portanto, infelizmente sem pipocas, a um ataque ideologicamente motivado ao direito à propriedade privada.