Começou. O quê? O vai vem dos automóveis em torno das escolas. Todos os dias milhares de crianças saem do habitáculo automóvel para o habitáculo escola para depois regressarem ao habitáculo casa, sendo que no habitáculo casa há ainda que ter em conta esse habitáculo dos habitáculos que é o quarto. Resumindo, ao longo do dia eles passam de um interior para outro. São as chamadas crianças de interior. São as crianças do nosso tempo.
Os espaços públicos, como as ruas, ou abertos, como o campo, causam-lhes insegurança. Têm menos autonomia que aquela que os seus pais experimentavam na mesma idade.
Um dos sinais desta mudança é o desaparecimento das crianças da rua. Nas ruas de muitas das nossas cidades vêem-se adultos, velhos, jovens. Crianças é que é mais difícil. Com forte probabilidade veremos mais cães a serem passeados do que crianças a passear.
Isto acontece porquê? Os franceses em artigos e livros invariavelmente ilustrados com fotos a preto e branco de crianças dos anos 50, 60 e 70 a brincar e andar na rua sozinhas, perguntam “Para onde foram as crianças?” Para o interior. Para o interior das casas. Para o interior das escolas. Para o interior dos ateliers.
Porque está isto a acontecer? As respostas são várias e vão desde o terror da pedofilia à constatação de que o tempo das brincadeiras organizadas em qualquer lugar pelas próprias crianças deu lugar ao tempo das actividades monitorizadas por adultos, sejam eles monitores, professores ou as próprias famílias, em espaços devidamente concebidos para tal.
Na Holanda fazem-se contas ao espaço ganho pelos automóveis nas ruas: muitos pais dizem não sentir as ruas seguras por causa dos automóveis. Noutras geografias há quem responsabilize a poluição. Obviamente a pandemia mais os confinamentos e o ensino à distância vieram reforçar ainda mais esta interiorização das crianças.
Em Portugal, país de pais cada vez mais velhos e filhos cada vez mais únicos, a interiorização das crianças nem sequer causa dúvidas: é vista senão como um progresso pelo menos como uma inevitabilidade. É certo que, nos fins de semana, se vêem chegar famílias ao parques infantis mas também é verdade que, salvo honrosas excepções, são pouco frequentados os pequenos espaços de brincadeiras instalados em pracetas, bairros e jardins onde era suposto as crianças brincarem depois de saírem das escolas.
E aqui chegamos a algo que foi desaparecendo das nossas ruas: o ruído das crianças a brincar. Mais preocupante, não é apenas das nossas ruas que esse som desapareceu, as próprias escolas estão a ficar silenciosas: “Há anos, aproximávamo-nos das escolas e ouvíamos barulho e ruído. Hoje, só ouvimos silêncio porque as crianças estão sentadas a agarradas aos ecrãs.” — alerta o especialista em Motricidade Humana Carlos Neto que dá conta do clima em que se educa actualmente: “Hoje, na escola, vive-se cheio de medo. As crianças estão aprisionadas dentro da escola. Há medo de as crianças poderem ter acidentes, de poderem sofrer violência, medo de tudo. O medo está na cabeça dos pais, na cabeça dos educadores, dos auxiliares.”
Por outras palavras, nos pátios e recreios assépticos, donde as árvores foram sendo erradicadas porque eram uma fonte de vários perigos, corre-se, salta-se e joga-se cada vez menos. Mas numa sociedade que confunde o estar sentado com o ser bem comportado, isto não causa alarme. E assim, começou agora um ano lectivo em que as crianças, depois de um dia em que passam mais tempo na escola que muitos trabalhadores nos seus empregos, passam para o interior do automóvel que os levará para o interior de casa. Alguns, tidos como mais afortunados, nem sequer põem o pé na rua pois entram directamente para a garagem donde um elevador os leva até ao interior do prédio, e depois ao interior da casa e depois ao interior do quarto…
Até quando isto será considerado um não assunto?