Em todos os meses do ano, a memória colectiva deveria deter-se com seriedade sobre o custo histórico da palavra Liberdade, face às últimas cinco décadas de democracia inconsistente, incapaz de realizar Portugal. Acreditou-se que liberdade seria suficiente, mas não, a democracia leva já mais tempo que a ditadura do Estado Novo e o atavismo apenas vestiu capa de modernidade a reboque do desenvolvimento europeu.
Quanta actualidade no querer acabar com o “Estado a que chegámos” de Salgueiro Maia, quanta verdade que já não nos faz sorrir com o gracejo. Temos razões de sobra para preocupação com o futuro. É legitimo equacionar a morte da democracia, um fenómeno à escala global referido por Steven Levitski e Daniel Ziblatt no livro “Como Morrem as Democracias”, 2018, bestseller do New York Times. Os investigadores da Universidade de Harvard referem que “…depois da guerra fria as democracias não morrem às mãos de generais em golpes militares com tanques nas ruas, mas de uma forma subtil nas urnas eleitorais”. Chegados ao poder através de canais democráticos, os políticos passam a mensagem de que o seu maior interesse é defender a democracia e a liberdade ao mesmo tempo que atacam as instituições democráticas, enfraquecendo-as, destituindo-as dos seus mecanismos de controle legal até ser tarde demais. Os autores descrevem sondagens que consideram impressionantes, por altura da eleição de Hugo Chávez, em que durante algum tempo a sociedade civil venezuelana acreditou viver em democracia, sem se dar conta da destruição das instituições e do regresso da ditadura.
Ora esta concepção é percetível em Portugal, e, não nos cabendo análise política, seguimos atentos observadores analistas e meios de comunicação social, ainda independentes e de livre expressão, principal herança de abril de 1974, para percebermos a salgalhada em que se converteu o cenário político português.
Mandatos legislativos de ilusão seguidos de desilusão, operações judiciais e casos consecutivos dos quais já se perde a conta. Entre muitos, Operação Marquês, BES, e TAP são exemplos major de ineficácia política que nos fazem sentir de mãos atadas num interminável “Portugalgate”, a braços com a degradação social, o empobrecimento dramático dos cidadãos e com a corrosão das instituições e serviços públicos.
O rumo bem entendido pelo cidadão comum como nós, é a falta de rumo de uma maioria absorvida na volúpia da gestão dos interesses solidários com sua própria causa, de amigos e família, aparentes dividendos que fazem da passagem pelo parlamento e governo, privilégio de quem procura singrar na vida sem esforço nem responsabilização, não se vislumbrando, nem de longe, a concretização do paradigma de serviço ou missão patriótica.
Somos governados por uma fórmula diluente de ministérios que converge o poder executivo, autocracia democraticamente eleita com expoente na falta de transparência e na achincalhação dos opositores, enquanto se afirma agir em nome da democracia. Vemos aqui um sinal de alerta, mencionado por Daniel Ziblatt, quando diz que proteger as democracias não é simples. Da oposição governativa decorre igual preocupação pela mesma insuficiência, tónica clubística e até infantilização argumentativa. Esquecidos os valores da representatividade democrática, os actores políticos de modo geral, evidenciam uma inegável avidez por poder.
Depois importámos a figura do outsider ameaçador da essencial estabilidade, mas o que constatamos estável é o falhanço ético, a inercia e a falta de talento político. Não são necessários certamente outros indicadores de que a democracia em Portugal está muito doente. Aponta-se a convergência dos votos como solução no receio que “novos corpus” manchem a dita estabilidade, a qual, até ao momento presente, apenas se tem apresentado como o primeiro factor de corrosão dos fundamentos da democracia.
Torna-se difícil aos cidadãos e observadores orientar-se nesta teia confusa, enxurrada de informação, contrainformação e debate de questiúnculas no espaço mediático que confunde a sociedade já de si enfraquecida e com altos níveis de iliteracia social. Os meios de comunicação fundamentais mecanismos de escrutínio das convulsões políticas, no imediato nada resolvem se as instituições democráticas, por inércia ou coacção, se abstiverem das suas funções e não impugnarem o curso errático da administração.
Ninguém espere, pois, nova revolução dos cravos, rosas ou antúrios para restaurar a democracia portuguesa que pode morrer nas urnas pela mão da sociedade exausta, desinteressada, e demissionária da sua quota de responsabilidade no “Estado a que chegámos”.