O Verão foi quase sempre o tempo do começo das guerras na Europa. As duas grandes guerras do século XX começaram no Verão: a Primeira no fim de Julho de 1914, a Segunda em 1 de Setembro de 1939. Durante milénios, os exércitos viveram da pilhagem dos territórios ocupados e até à mecanização e à disponibilidade transazonal dos meios logísticos era bom que as guerras começassem quando o tempo mais seco desimpedia os caminhos da lama e as colheitas estavam quase maduras para os invasores-predadores se abastecerem.

A dissuasão ainda vale?

Neste Verão de 2022, entre a entrada em perigosa rotina da guerra na Ucrânia, as reacções de Pequim à visita de

Nancy Pelosi a Taiwan, a liquidação de al Zawahiri no seu refúgio afegão pelos drones norte-americanos e a crise económica anunciada para a Europa, não é estranho que muitos se sintam inquietos com a convergência de sinais de fogo.

Será que o espectro da guerra nuclear, que tem sido o dissuasor da guerra aberta, desde o Verão de 45, quando os japoneses de Hiroshima e Nagasaki sofreram na carne os efeitos da arma definitiva, continua a funcionar como protecção contra escaladas?

A Grande Guerra começou por uma série de acontecimentos inesperados, a partir da morte de Francisco Fernando de Habsburgo e da sua mulher morganática, Sofia Chotek. Uma morte resultante de um grande azar, quando o motorista do Arquiduque se enganou no trajecto e levou o casal para um cul de sac, onde estava o terrorista Gravilo Princip, que os abateu com uma pistola, à queima-roupa.

Nesse tempo, como explica A. J. P. Taylor em How Wars Begin, a mobilização dos exércitos, de homens, cavalos, canhões, munições, era o dado essencial para o desencadear das operações. Por isso, a rede de comboios, mais desenvolvida nuns países do que noutros, marcava a diferença e a escalada. A Alemanha tinha uma rede muito avançada; a Rússia precisava de mais tempo para mobilizar.

A guerra foi acolhida com entusiasmo pelas multidões – em Paris, em Londres, em Berlim –, multidões habituadas às guerras curtas da batalha decisiva de Napoleão e Clausewitz. Mas em 1914, apesar de já haver metralhadoras e de, com o cavar das trincheiras, a vantagem passar para a defesa, os generais ainda achavam que o ataque e a iniciativa eram a chave da vitória. Quatro anos e milhões de mortos depois, a linha da frente na Flandres só tinha variado 80 quilómetros.

A Segunda Guerra Mundial, uma continuação e consequência da paz de Versalhes que humilhara a Alemanha mas a deixara como potência demográfica e económica, também começou no Verão, com a Blitzkrieg contra a Polónia, que, entre alemães e soviéticos, foi comprimida e vencida em curtas semanas.

Depois veio a Guerra Fria que começou, simbolicamente, em 25 de Fevereiro de 1948, com o golpe de Praga. Num processo que seguiriam em toda a Europa Oriental, os soviéticos puseram os comunistas checoslovacos no poder, desfazendo-se dos moderados que tinham por aliados numa frente supostamente popular. Mas a Guerra Fria era outra história, com o terror nuclear cruzado a refrear escaladas e com o pacto de Ialta – assinado e garantido por Estaline, Roosevelt e Churchill – a demarcar os espaços em que cada grande beligerante podia actuar. Por causa de Ialta, os alemães de Leste, os húngaros e os checos foram reprimidos em 1953, em 1956 e em 1968, e o PCP português ficou quieto em 25 de Novembro de 1975, dando origem à hegemonia do Centrão no país dos brandos costumes.

Volta agora a haver uma guerra quente na Europa Oriental nos limites da Eurásia, com os ucranianos, invadidos pelos russos, a serem apoiados, em armas e munições, pelos Estados Unidos e pelos Estados europeus, que assim enfrentam a Rússia por interpostos ucranianos. Nesta operação, em que a Europa tem sido a primeira vítima das sanções que decretou contra a Rússia, os riscos de escalada parecem, apesar de tudo, sob controlo – embora os russos se desmultipliquem em avisos veladamente ameaçadores e possa acontecer um azar limite, como o que levou o chauffeur do Arquiduque a conduzir o patrão para a emboscada.

Taiwan e al Zawahiri: convergência americana

Na última semana, alguns episódios vieram lembrar esses riscos de guerra: o mais grave e o mais sensível foi a visita a Taipé, capital de Taiwan, da presidente da Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi. Note-se que não foi a primeira visita crítica de um político norte-americano a Taiwan: há 25 anos, o então presidente da Câmara dos Representantes, Newt Gingrich, um republicano conservador, liderou uma delegação de 13 congressistas à Coreia do Sul, Japão, China, Hong Kong e Taiwan. Nessa altura, nem Hong Kong, nem Macau, tinham voltado à China e a visita de Gingrich a Taipé, em 2 de Abril, não fora previamente anunciada – o dirigente norte-americano anunciara sim que os Estados Unidos defenderiam Taiwan se a China atacasse.

Na visita, que durou três horas, Gingrich avistou-se com o presidente Lee Teng Hui e com o vice-presidente Lien Chan. Na época, respondendo à declaração de Gingrich de que os Estados Unidos defenderiam Taiwan contra qualquer ataque da República Popular da China, os chineses teriam respondido que, uma vez que não pensavam atacar a ilha, os americanos não teriam que preocupar-se em defendê-la…

Sabedoria confuciana que agora parecem ter descartado: a chegada de Pelosi foi recebida com protestos verbais duros e com um conjunto de exercícios militares, por terra, mar e ar, nas imediações da ilha e no Estreito da Formosa. Também o líder máximo chinês, o presidente Xi Jinping, tem insistido que a unificação de Taiwan com a República Popular da China é o seu objectivo primordial. Entretanto, os exercícios militares de Pequim, com fogo real, rodeiam a ilha em cinco frentes, mesmo a tocar no limite de 10 milhas das águas territoriais de Taiwan.

A política em relação à China é dos poucos pontos em que há convergência entre Republicanos e Democratas e entre as Administrações Trump e Biden. Todos consideram Pequim o poder desafiante à hegemonia norte-americana; e quer Biden, quer Pelosi, situam a rivalidade com a China no plano ideológico e institucional – de democracias contra autocracias.

Embora Washington tenha conseguido que alguns dos aliados europeus prestem mais atenção às implicações e aos riscos político-económicos dos investimentos chineses e haja uma retórica de solidariedade democrática para com Taiwan, para a maior parte dos decisores europeus Taiwan é uma “questão americana” e dos países do Pacífico, como o Japão, a Austrália e a Coreia do Sul. Assim, só a Lituânia, que já entrara em ruptura com Pequim por causa de Taiwan, apoiou claramente a visita de Pelosi. Não obstante, ainda há poucos meses, uma delegação do Parlamento Europeu visitou Taipé, e quer Londres quer Berlim têm criticado a política de direitos humanos de Pequim.

Os governantes europeus estão sobretudo preocupados em manter os seus eleitorados mobilizados na política pró- Ucrânia e anti-Putin para quando, com a chegada do Outono-Inverno, cair sobre eles a austeridade causada pelas sanções e pela resposta da Rússia às sanções e a “salvação do planeta” e a “contenção de Putin” começarem a ter custos reais quotidianos para o cidadão comum.

Neste contexto, a liquidação do líder da Al Qaeda, Ayman al Zawahiri, em 31 de Julho, atingido por um drone enviado pelo Deep State norte-americano, aparece como um episódio menor de uma guerra aparentemente já esquecida; uma guerra antiterrorista, que continua a responder ao ataque à América com que o terrorismo jihadista abriu este século.

Além de cumprir a tradição americana de perseguir e punir os que atacam a América e de vingar a “morte dos justos” (Hollywood, dos Westerns aos filmes B, está cheia de fitas dessas), a operação teve também a intenção de dar algum fôlego ao presidente Biden, cuja impopularidade bate recordes, e aos Democratas, nas eleições de meio de mandato, em Novembro.

Biden pôde, assim, anunciar a operação, na esperança de que em Novembro haja alguma melhoria nas urnas para os candidatos do seu partido.

Será́ difícil. De qualquer forma, não se chorarão muitas lágrimas ocidentais por al Zawahiri e, até lá, a vida e o Verão tenderão a continuar, com as férias de uns poucos e as guerras e os incessantes trabalhos de muitos.

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