O calendário marcava o dia 10 de Julho de 2016. Um Domingo de Verão, quente e húmido – coisa rara em Londres – e com vários afazeres na agenda. Portugal voltava a uma final do Euro, 12 anos depois, e eu, juntamente com os meus três flatmates, um holandês, um escocês e uma cazaque – não, não é uma anedota – tinhamos organizado um churrasco no nosso rooftop no coração de Shoreditch. Vinham algumas dezenas de amigos, muitos franceses, e havia que comprar carne suficiente. Um amigo argentino, habituado ao carvão, às facas e aos cortes da vaca, pôs, gentilmente, as mãos nas brasas e alimentou-nos a todos.

O Éder marcou, Portugal venceu, a Selecção levantou a taça e entrou no olimpo do futebol. Entretanto, centenas de adeptos portugueses irromperam do alcatrão e inundaram a High Street. A dada altura, a Laura, uma amiga francesa coberta de suor, pena e lágrimas, diz-me, e traduzo: “Que injustiça. Precisávamos tanto de ter ganho o Euro. Era essencial para unir o país.” A reflexão, pertinente, mostrava as vergonhas de um país, parcialmente polarizado, a menos de um ano de ir às urnas. Na altura – talvez porque ligue pouco, perceba ainda menos, e só veja futebol em Euros e Mundias – percebi que aquela final era, sobretudo, uma necessidade contemporânea de unidade e orgulho nacionais.

No passado Domingo, também 12 anos depois, os espanhóis fizeram História: impuseram-se aos ingleses e conquistaram o seu quarto Euro. O terceiro neste século. 24h passadas, e depois dos festejos com o Rei Felipe VI e a Infanta Sofía no relvado de Berlim, os miúdos da La Roja aterraram em Madrid para os cumprimentos formais, tanto da Casa Real como da Moncloa, e daí começaram o seu passeio triunfal por Colón e Cibeles.

Nestas 24h, La Roja – celebrada, durante todo o campeonato, pela esquerda como uma espécie de pinnaculum, pot-pourri ou amálgama social de causas fraturantes – passou de ícone do progresismo para memória do franquismo, porque, imagine-se, não alinhou nas obsessões ideológicas do oficialismo.

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Nico Williams – que entretanto deixou de ser um negro filho de emigrantes ganeses, porque, numa resposta a um jornalista, sugere que Pedro Sánchez baixe os impostos – Lamine Yamal – outro jogador que também deixou de ser filho de um emigrante marroquino e de uma emigrante da Guiné Equatorial, porque, imagine-se, gritou umas quantas vezes “Viva España!” – passaram de mascotes de uma narrativa política a prováveis alvos da Agencia Tributaria.

Para piorar o quadro, Dani Carvajal, cumprimentou, com muito sacrifício, Pedro Sánchez, e tornou-se num inimigo público a abater. Luis de la Fuente, um católico confesso, fez a apologia do esforço, do trabalho, do mérito e dos “valores”. Morata, num tom embriagado e desafiante, gritou, diante de milhares de pessoas que o seguiram, “¡Gibraltar es español!” e não “Palestine will be free, from the river to the sea”. E, pelo meio, ainda ouvimos os jogadores cantarem “soy de aquellos que acredita en la Libertad” do Julio Iglesias – toda uma caricatura de um “machismo” do século passado. Em resumo, as mascotes da narrativa oficial, viraram agentes culturais contra-revolucionários. E o pior mesmo – para a esquerda, claro – é que aqueles jogadores foram infantilmente genuínos, e de uma performance contrária a qualquer artificialidade ou montagem.

Para uma certa esquerda – atada a um pós-modernismo datado, decadente, identitário, e acantonado numa bolha cada vez mais pequena – que passou as últimas semanas a realçar, a enaltecer e a instrumentalizar as origens, a raça e a cor da pele deste e daquele jogador de futebol, a lição não poderia ser mais clara. Por isso, e como brilhantemente escreveu o Bustos, tendrás que buscarte a otros héroes más reutilizables, más concernidos por el cambio climático, alguna guerrera racializada estilo Biles que encaje a martillazos en el patrón woke, aunque ella siga prefiriendo ser reconocida por sus inalcanzables hitos de fortaleza y no por sus anecdóticos instantes de debilidad. Porque eso hacen los deportistas de élite desde Píndaro: acercarse a los dioses merced a un esfuerzo sobrehumano y festejarlo luego hasta el amanecer como simples mortales. Así nuestros futbolistas de oro.