Pedro Sánchez tem a capacidade – notável, diga-se – de mostrar, seja por falta de decoro, vergonha, ética, ou simplesmente por necessidade, que é possível descer, descer e voltar a descer o grau zero. Na cotação moral de Pedro, a Palavra vale zero, o compromisso eleitoral com os cidadãos compete na mesma liga ética que o papel higiénico, e a Constituição é um mero obstáculo passível (e possível) de ser ignorado, sempre e quando, obture a sua ambição política.

No seguimento das eleições legislativas de 23 de Julho – perdidas pelo PSOE e pela sua mayoría progresista – Pedro Sánchez tinha três opções: (1) demitir-se da liderança dos socialistas e transferir a decisão do voto do PSOE para o novo líder; (2) apoiar, abstendo-se naturalmente, um Governo a solo de Núñez Feijóo – o vencedor das eleições – e negociar as condições dessa abstenção; ou (3) renovar a sua mayoría progresista com comunistas, radicais de extrema-esquerda, herdeiros do terrorismo da ETA, e apoiantes das narco-ditaduras latino-americanas e das teocracias islâmicas. Optou pela última opção. A mais difícil, diria. O problema, é que o xadrez político pós-23 de Julho obrigava a alargar a tralha de apoios da última legislatura, ao foragido Carles Puigdemont – o homem, que depois de organizar um “referendo” ilegal com o apoio da entourage putinista (como contaram o Michael Schwirtz e o José Bautista no The New York Times), fugiu de Espanha dentro da mala de um carro, e que Pedro Sánchez apelidou de “Le Pen español”.

Ora, a liturgia do acordo tem sido penosa de ver. Tanto política como esteticamente. Estavam os espanhóis a banhos, e Yolanda Díaz, Vice-Presidente (segunda) em funções e líder da extrema-esquerda espanhola, vestiu-se de branco Prada e rumou a Bruxelas para personificar o primeiro beija-mão ao delinquente. Sorrisos, gracinhas, e gestos de cumplicidade (ou talvez necessidade) entre a comunista e o supremacista catalão.

A procissão fez escola e no penúltimo dia de Outubro – e véspera do juramento público da Constituição por parte Princesa Leonor, cumprindo-se assim o artigo 61, número 2 da Constituição espanhola – o “número 3” do PSOE, Santos Cerdán, fez-se acompanhar da líder dos socialistas europeus, Iratxe García-Pérez – uma senhora que passou os últimos 6 anos a afirmar que Puigdemont era um foragido da Justiça espanhola e não um exilado político – para a adoração ao delinquente. O encontro – vigiado por uma fotografia de dimensões inumanas do “referendo” ilegal de 1 de Outubro de 2017 – selou o que a imprensa espanhola anunciava há meses: Puigdemont e a sua meia dúzia de deputados do Junts, apoiarão a “investidura” de Pedro Sánchez a troco de uma Lei de Amnistia ad hominem e escrita pelo seu advogado, Gonzalo Boye – um condenado por um sequestro da ETA, e um dos personagens mais sinistros da política espanhola. Ou seja, Puigdemont apoiará Sánchez, sempre e quando o Estado e as instituições democráticas peçam perdão por terem defendido a Lei e a ordem constitucional na sequência do 1 de Outubro de 2017. Ou melhor dito: Puigdemont apoiará Sánchez sempre e quando Espanha se ajoelhe perante o próprio, que prometeu reincidir na prática dos crimes cometidos em 2017.

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Ainda assim, pouco importa que a Lei de Amnistia – algo que Pedro Sánchez, vários dos seus Ministros, ex-Ministros, e destacados socialistas afirmaram que nunca apoiariam – não tenha qualquer legitimidade eleitoral e política, ou mesmo qualquer encaixe constitucional – porque viola, de maneira flagrante e grosseira, os princípios da igualdade entre todos os espanhóis e o princípio da separação de poderes – se isso servir para que Pedro Sánchez se mantenha no poder. Afinal, para o Presidente em funções, os limites constitucionais são relativos, utilitários, e moldam-se às circunstâncias, aos tempos e às necessidades do próprio.

Não há por isso enormes diferenças – de método, claro – entre Pedro Sánchez e Viktor Orbán. Um e outro são fontes da degradação institucional dos seus países e de perigo para as suas Democracias. No entanto, as reacções de Bruxelas a Lisboa – a um e a outro – não podiam ser mais distintas (honra seja feita ao eurodeputado Paulo Rangel, que não se tem calado perante a desfaçatez de Pedro Sánchez): enquanto Pedro tem estatuto de santo, Viktor é a encarnação de Judas. E esta persistência em tratar diferente aquilo que no essencial é igual, contribuiu, igualmente, para o desgaste institucional e democrático que dizem combater.

Acusem-me de lirismo ou idealismo – na política, estes conceitos deveriam valer mais do que qualquer táctica de casino – mas chegados aqui, a alternativa decente são novas eleições legislativas a 14 de Janeiro de 2024. Pela transición, pelo valor da Palavra, e pela Democracia.