Pedro Sánchez está para Democracia espanhola como Fernando VII para os Borbón. Um e outro partilham um profundo desprezo pelas Constituições que juraram – Pedro Sánchez a de 1978, Fernando VII a La Pepa de 1812. Um traiu os liberais do século XIX, o outro traiu a esquerda da igualdade e os eleitores do passado 23 de Julho de 2023. Um foi autor de um golpe de Estado (1808) contra o seu próprio pai, Carlos IV, o outro lidera – enquanto escrevo – o seu “grande saldo em frente”. Um teve um enterro feito à pressa – porque o fedor do seu cadáver era “insuportável”, como contam as crónicas da época – o outro está a enterrar o partido que (ainda) lidera.

Não tenhamos medo das palavras: o acordo celebrado no dia 9 de Novembro entre o PSOE e o Junts traiu a memória da transição, feriu de morte a Constituição e arrastou o Estado de Direito e o princípio da separação de poderes – fundamental em qualquer Democracia – para um lamaçal de interesses particulares de uma minoria. Não se tratou, portanto, de um acordo entre partes livres iguais, mas da rendição total da Democracia espanhola.

O PSOE, um partido com mais de um século de história, e protagonista da transição e consolidação da Democracia espanhola, cedeu em tudo. Abdicou da sua visão federal de Espanha ao renunciar a cobrança de quaisquer impostos pagos por contribuintes catalães (cedeu também em matéria de Segurança Social ao abdicar dessa competência contributiva, transferindo-a para o País Basco – uma exigência dos conservadores do PNV). Comprou a narrativa histórica e política do rançoso separatismo catalão, ao reconhecer que os supremacistas são, imagine-se, “vítimas de perseguição política” desde 1714, consentindo assim com o discurso surrealista de que o “referendo” ilegal de 1 de Outubro de 2017 é, afinal, “legítimo”. Resignou-se à exigência da amnistia ad hominem. Abriu a porta a um referendo de autodeterminação a ser decidido exclusivamente pelo Parlamento Catalão, atirando assim a soberania nacional, a Constituição e a jurisprudência dos Tribunais Superiores, incluindo a do Supremo Tribunal da Catalunha, para a fogueira sanchista. E, para sepultar de vez o império da Lei, acolherá o conceito de lawfare no ordenamento jurídico espanhol. E isto merece um parêntesis.

(A ideia de lawfare, ou “o uso da Lei para perseguir um oponente por razões políticas”, sacraliza a venezuelização de Espanha, ao permitir que o poder legislativo – através de “comissões parlamentares e partidárias” – vigie e determine se esta ou aquela decisão judicial de um juíz (ou um colectivo de juízes) é (ou não) uma forma de “perseguição política”, e não o simples e recto cumprimento da Lei. Dito de outro modo, o Parlamento passará a inspeccionar as decisões dos Tribunais e, caso sejam consideradas lawfare, iniciar-se-ão “acções de responsabilidade” ou “alterações legislativas”. É, em resumo, o fim da separação de poderes.)

Segundo a elite sanchista, não há outro caminho possível: ou aceitamos as condições de um fora da Lei, ou permitimos um governo de direita. Afinal, para o PSOE de Pedro Sánchez, é preferível aviar a Democracia e ajoelhar o Estado de Direito, à saudável e democrática alternância de poder.

Assim, e perante esta agonia da Democracia liberal – e assumindo que na política contemporânea não há dissidentes heróis de última hora – resta resistir e lutar. Em Bruxelas, nos Tribunais do Luxemburgo e de Estrasburgo, em frente das Embaixadas de Espanha nas capitais europeias, nos jornais, nas rádios, nas televisões, nas ruas e praças de Espanha. Porque, como escreveu o Jorge Bustos no El Mundo, “las libertades que no se ejercen se pierden. Así que todos a la calle. O a casa a llorar lo que no supimos defender.”

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