Estávamos em Outubro de 2020 – no auge da segunda vaga de contágios de COVID-19 em Espanha – quando o Vox apresentou uma moção de censura ao Governo Sánchez-Iglesias. O instrumento político não pretendia derrubar o PSOE e o Podemos, mas obrigar o PP de Pablo Casado a clarificar a sua posição em relação ao Vox. Na altura – os primeiros Governos Autonómicos de Isabel Díaz Ayuso e Juanma Moreno, em Madrid e na Andaluzia, respectivamente, foram possíveis graças a acordos parlamentares com o partido de Santiago Abascal – o tema estava longe de ser pacífico na Génova 13.

Lembro-me dos debates que antecederam aquele 22 de Outubro. Nos jornais, nas rádios, nas televisões, nas tertúlias. Discutia-se, dramática e apaixonadamente – como só os espanhóis sabem – se o PP sobreviveria ao quase sorpaso do Vox nas sondagens, e qual a melhor estratégia para lidar com um partido, que um ano antes, e em apenas 6 meses, tinha passado de 10% para 15%, e mais de três milhões e meio de votos.

Naqueles dias, ninguém sabia qual seria a posição de Pablo Casado, nem o que diria às Cortes. Diz-se que escreveu o discurso sem consultar o seu inner circle.

O resto da história já conhecemos: Pablo Casado fez um discurso brilhante, clarificador – demarcando-se política, social e culturalmente do iliberalismo do Vox –, intelectualmente sério e aplaudido por muitos. Eu, incluído. O problema – que reconheci e escrevi no dia seguinte às legislativas espanholas de Julho de 2023 – é que este discurso foi ineficaz e colocou o PP à beira do abismo político. Pablo Casado, que iniciou o seu discurso citando Cánovas del Castillo – en política lo que no es posible es falso – não percebeu que ignorar um partido com mais de três milhões e meio de votos não era possível, logo era falso.

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A tese de Pablo Casado – a das linhas vermelhas – que defendi e assinei, falhou em Espanha e em Portugal. Os motivos variam, incluindo de país para país, mas há algo comum na política ibérica, e que ingenuamente não percebi em 2020: o PSOE e o PS não são o SPD alemão.

Em Espanha, a clareza de Pablo Casado levou o PP ao tapete. Pelo contrário a flexibilidade, a ambiguidade, e também a abrangência discursivas de Isabel Díaz Ayuso e Juanma Moreno relativamente ao Vox – aquilo que chamei “A 3ª via” – resultaram em maiorias absolutas e expressivas do PP, e na quase irrelevância do Vox.

Em Portugal, esta estratégia só foi testada – com sucesso, por sinal – por José Manuel Bolieiro. Apesar do acordo político com o Chega, e da falta de clareza em relação ao partido de André Ventura durante a campanha eleitoral açoriana de 2024, Bolieiro venceu as eleições, teve mais votos e mais deputados do que em 2020. Tal como em Espanha, o espantalho do “fascismo” e da “extrema-direita” não só não assustou o eleitorado, como não retirou força ao centro-direita.

Ora, a Política não é a fabulação de uma realidade, ou a construção de narrativas de socorro para fazer valer um ponto de vista, mas a arena dos factos. A não ser assim, corremos o risco da irrelevância ou do afogamento por uma onda de alegados fascistas, racistas, xenófobos, e demais pragas do Egipto. E por isso, reconheço que estava enganado.

As linhas vermelhas e o apelo ao voto útil falharam – um dos “pressupostos tácticos” e lógicos da cerca sanitária – e a AD não conseguiu concentrar os votos da direita – social, ideológica e cultural – e do desencanto. E, perdoem-me o desabafo, um Governo minoritário da AD, apoiado por 1/3 dos deputados da Assembleia da República, não transforma nem reforma nada. Alimenta clientelas, grupos e grupúsculos. Gere os assuntos da República por semanas, enquanto espera, ligado às máquinas, a sorte no próximo acto eleitoral.

Por isso, chegados ao dia seguinte ao 10 de Março, a AD, se quiser sobreviver institucional, cultural e politicamente, terá de polarizar, liderando o polo da direita. Falando de assuntos incómodos, que não aparecem nas estatísticas – mas que fazem manchetes do Correio da Manhã – e que não podem ser renegados para as margens. O Chega já não o partido de um homem só, mas o partido de um homem com 50 deputados e vários milhões de euros de subvenções públicas. Dirão, e com razão, que o Chega fede a estatismo e a populismo, e que parte do que defende hoje está mais alinhado, programaticamente, com a esquerda do que com a direita. Certamente, mas parte do eleitorado de André Ventura também são pessoas que finalmente se sentem representadas e parte de algo. Ignorá-las, tal como o fez Pablo Casado, apenas alimentará o seu ressentimento. E isto, para a AD, é uma ameaça francamente maior, do que ser fotografado com o André Ventura numa reunião entre partidos.

Não espero nem quero um Governo AD-Chega, mas espero e quero que no jogo de sombras entre a AD e o Chega a primeira vença, e para isso, precisa de reconhecer legitimidade institucional ao partido de André Ventura, e tentar, pelo menos, perceber quais as “exigências” do próprio Chega, a troco de uma maioria estável. Só este número permitirá ao PSD dramatizar e controlar a narrativa.

Em Espanha, Franco saiu da tumba pela mão de Pedro Sánchez, e não por qualquer acordo entre o PP e o Vox – que no caso de Madrid e da Andaluzia, antes das maiorias absolutas do centro-direita, se limitou a acordos pontuais em matéria de impostos, de redução da despesa pública, de liberdade na educação e pouco mais.

Não digo que o ajustar da agulha não tenha riscos, mas se até Pedro Nuno Santos já percebeu que “não há 18% de votantes racistas ou xenófobos em Portugal, mas há muitos portugueses zangados que sentem que não tem tido representação”, seria suicida ignorar mais de um milhão de eleitores.

O caminho inverso, leia-se, aquele que a AD abdica de polarizar e de liderar o polo da direita, leverá, inevitavelmente, a uma mudança – outra – do sistema político português onde o PS lidera o polo da esquerda, e o Chega lidera o polo da direita. E eu, como eleitor de centro-direita, não quero ficar sem uma alternativa maioritária e reformista.