Na sociedade da informação e do conhecimento em que vivemos, as metamorfoses do capitalismo dito cognitivo (Boutang, 2007) apontam em duas direções principais. De um lado, as grandes corporações multinacionais, tecnológicas e financeiras, assentes em redes centralizadas e oligopolistas e orientadas para o mercado global, do outro, uma multidão de comunidades inteligentes baseadas em redes distribuídas e plataformas colaborativas made in e orientadas, preferencialmente, para uma economia dos bens comuns colaborativos. Isto dito, já não há muitas dúvidas quanto à arquitetura do capitalismo dominante tal como é ditado por estas grandes corporações tecnológicas e financeiras multinacionais. Enunciemos, então, as suas principais propriedades, em plena operação:

  1. Da frente industrial à desmaterialização da base produtiva e comercial
  2. Dos direitos proprietários convencionais aos novos direitos de acesso e serviço
  3. Da inteligência humana para a inteligência artificial e a automação
  4. Da contratação salarial ao trabalho flexível e à prestação de serviços
  5. Do capital e crédito convencionais à lógica financeira de grupos e fundos
  6. Dos lucros industriais às lógicas de distribuição rentista e acionista
  7. Da tributação nacional ao planeamento da evasão fiscal extraterritorial
  8. Da família nuclear convencional ao hibridismo pós-familiar
  9. Do escrutínio independente à apropriação e vigilância da esfera pública
  10. Do governo do estado-nação à governança corporativa multinacional

Este modelo económico e financeiro, centralizado e oligopolista, orienta a aplicação dos capitais para o investimento financeiro e leva a uma descapitalização da economia e da sociedade que, assim, se tornam cada vez mais disfuncionais. O estrangulamento económico provocado por esta distorção financeira leva, a prazo breve, ao colapso do sistema produtivo. Nesta sequência, os grupos dominantes apropriam-se, igualmente, dos aparelhos ideológicos de estado, ou seja, das atividades de lobbying que agem sobre os meios de comunicação social, a função regulatória do Estado, os serviços de assessoria e consultoria governamentais, os centros de investigação e as organizações não-governamentais, o mecenato e o patrocinato, entre outros meios de influência e pressão. A estratégia das grandes corporações segue, entre outras, três orientações principais. A primeira é encarecer o conhecimento, torná-lo um recurso escasso através das restrições de acesso a direitos, patentes e licenças de utilização. A segunda orientação é não valorizar a economia dos bens comuns colaborativos e a medida dos seus valores imateriais e intangíveis, mas sim a apropriação final de resultados expressa na remuneração de ativos financeiros. Uma terceira orientação visa acentuar os interesses difusos dos cidadãos, criando bolhas mediáticas para os condicionar e manipular e, assim, diminuir e polarizar a sua mobilização política. Em conjunto estas orientações geram uma profunda deceção política e impedem, na prática, as organizações da sociedade civil de tirar partido do potencial colaborativo que elas contêm.

Este modelo global de capitalismo tecnológico e financeiro é profundamente narcisista e desigual e subestima aquilo que é, na prática, uma verdadeira tragédia dos comuns. São os pactos climáticos que não se cumprem, as redes criminosas que exploram os fluxos migratórios, a falta de investimento na saúde pública e o regresso das crises pandémicas, a automação e a inteligência artificial que geram erosão no mercado de trabalho e uma crescente desigualdade social, a multiplicação dos casos de corrupção e fraude fiscal, enfim, os riscos de uma governação autocrática e de regimes cada vez mais iliberais. Ou seja, com este modelo de capitalismo global assistimos a uma mutação profunda da arquitetura do sistema político que tende a evoluir para um regime de vigilância corporativa, com suporte nos dispositivos tecnológicos e financeiros detidos e controlados por estas grandes corporações multinacionais.

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No seio, mesmo, deste regime centralizado, oligopolista e corporativo das grandes companhias multinacionais e tirando partido de muitos dos seus dispositivos tecnológicos cresce um outro tipo de sociedade em rede, se quisermos, um capitalismo popular de economia partilhada e colaborativa com base em comunidades inteligentes, redes distribuídas e plataformas colaborativas, isto é, uma espécie de anarcocapitalismo em modo de autogoverno e autogestão que aproveita os espaços colaborativos para reinventar e partilhar todo o capital cognitivo disponível nas redes e plataformas em direção a uma economia dos bens comuns colaborativos. Quanto às propriedades emergentes deste anarcocapitalismo das redes distribuídas e das plataformas colaborativas da sociedade em rede podemos, desde já, enunciar o seguinte:

  1. É preciso investir em plataformas para partilhar o conhecimento subutilizado
  2. É necessário reinventar o espaço público e criar comunidades inteligentes
  3. É preciso investir em ecossistemas criativos para gerar os novos bens comuns
  4. É preciso investir nas hiperligações entre economia criativa e produtiva
  5. É preciso investir na arquitetura dos sistemas de economia local e regional
  6. É preciso investir em bancos de terras e incubadoras empresariais
  7. É preciso investir em bancos cooperativos, mutualistas e comunitários
  8. É preciso investir nas moedas sociais, no microcrédito e sistemas blockchaine
  9. É preciso investir em políticas sociais para combater a pobreza e desigualdade
  10. É preciso investir no rendimento básico garantido sob certas condições.

Acresce que todas estas atividades da novel sociedade em rede serão fortemente alimentadas pela intensificação do ativismo social e político que crescerá em redor da tragédia dos comuns e suas clivagens, em especial, os impactos das alterações climáticas, as crises pandémicas, os problemas crescentes de saúde mental, os protestos contra a guerra e o belicismo das organizações de defesa, a luta contra as desigualdades sociais e a proteção da família, a reivindicação do rendimento básico universal, a proteção dos trabalhadores migrantes, o aumento da ajuda humanitária. Na verdade, é como se o ativismo da luta de classes do século XX, baseado no processo industrial e na exploração da mão-de-obra, fosse transferido para o ativismo do processo mental do século XXI, alimentado desta vez pelas grandes corporações globais. Esta transferência está em curso, visa isolar, marginalizar e subordinar os indivíduos, usa as ferramentas de inteligência artificial para nos proporcionar universos de imaginação e fantasia e, mesmo, mundos paralelos que nos afastam e isolam das duras realidades da vida quotidiana, ou seja, forjar o sistema ideal para controlar as pessoas.

Notas Finais

Aqui chegados, temos, frente a frente, um anarcocapitalismo corporativo de grandes dimensões globais e, do outro, um anarcocapitalismo descentralizado e distribuído, muito flexível e colaborativo e muito baseado no nomadismo tecno-digital dos seus agentes principais. Como dissemos, esta bifurcação muito assimétrica corre o risco de desencadear e desembocar num ativismo sociopolítico cada vez mais radical que, tarde ou cedo, acabará por pulverizar e estrangular o sistema político-partidário, tal como o conhecemos hoje. O resultado só pode ser um endurecimento da vida institucional, política e social dos Estados-nação. Cuidado, pois, com a forma como declinamos hoje a realidade, em especial a descontextualização, nua e crua, que as bolhas de informação e as novas formas de inteligência carregam consigo e que, estou certo, nos farão passar inúmeras provações.