O mais recente episódio da guerra implícita entre a acusação e a defesa envolvidas no caso judicial José Sócrates, as entrevistas do juiz Carlos Alexandre e as reacções mediáticas do ex-primeiro-ministro, devem levar-nos a pensar em pelo menos três dimensões do fenómeno, que é fundamental para todos nós.
A primeira é no desprezo que as elites portuguesas, neste caso a judicial e a politica, possuem pelos cidadãos comuns e pelos jornalistas.
A segunda é a da capacidade do jornalismo português produzir informação de interesse público.
A terceira tem a ver com o facto de que se algum dos membros destas elites, a começar pelo juiz Alexandre e pelo político Sócrates, acredita que é possível ter Poder sem sofrer pressão violenta e, por vezes, lesiva.
Em relação à primeira dimensão, há duas pequenas histórias que andam sempre comigo.
A primeira passou-se com um catedrático, docente de uma cadeira do meu primeiro ano de doutoramento, há poucos anos. Apesar de ser de extrema-esquerda, e bastante maduro, o catedrático afirmou durante uma aula que “uma coisa é o conhecimento que produzimos entre nós, outro o que partilhamos com a comunidade. O segundo tem necessariamente que ser mais básico”.
Quando defendi que uma das condições nucleares para uma democracia saudável e evoluída é a necessidade de transformar todo o conhecimento complexo em informação acessível, porque só o conhecimento garante cidadãos livres e independentes, o catedrático chamou-me “demagogo”. Não foi grave o insulto, estou habituado. O que foi grave é que percebi que ele acredita no que diz.
A segunda história passou-se com um juiz, por sinal muito mediático há uns anos. Ao cruzar – se com a procuradora Maria José Morgado, minha co-autora no livro sobre a corrupção publicado em 2003, disse-lhe. “Aquilo que vocês fizeram, publicar essa merda de livro, é uma vergonha. Estes assuntos só se discutem entre nós”.
Todo o historial do caso judicial que aqui menciono, e do episódio recente que também menciono, como de outros semelhantes, em aberto, encerrados, recentes ou contemporâneos, como quase todas as intervenções de membros das elites portuguesas, sejam estas políticas, judiciais, empresariais ou corporativas, têm como fundamento da sua estratégia e do seu conteúdo este profundo desprezo pelos cidadãos comuns, ou seja pela democracia.
A matriz de todas as intervenções mediáticas das elites referidas é a da ocultação premeditada.
A matriz ocultação premeditada tem um racional de construção. Antes de tudo o mais, o membro da elite está convicto de que a mensagem que quer passar será passada, mesmo que não seja informativa, ou seja que não tenha interesse público, e será assimilada como facto pelos cidadãos, mesmo que nada a sustente.
Ou seja, o membro da elite acredita que pode manipular, porque sabe que o negócio mediático e as condições permanentes e particulares do jornalismo, tema que desenvolverei mais abaixo, e a falta de conhecimento do cidadão comum o permitem.
Se assim não fosse, o juiz Carlos Alexandre nomearia explicitamente que dá as entrevistas porque a investigação contra José Sócrates vive um momento de especial fragilidade, ou porque quer obter munições para combater um momento de especial fragilidade que está próximo, e o político José Sócrates admitiria que está numa luta desesperada pela sua sobrevivência política, que no seu caso é uma luta desesperada pelo seu futuro como pessoa.
Mas este é apenas um caso mais de ocultação premeditada, igual a tantos outros permanentes na nossa democracia. Só para recorrer à recente espuma dos dias, se não obedecesse ao racional de ocultação premeditada, a jovem parlamentar Mariana Mortágua assumiria que defende uma profunda clivagem social e económica na sociedade portuguesa, e que tal determina a sua acção política.
O racional de construção completa-se com a crença do membro da elite no poder mediático. Quando o juiz Carlos Alexandre e o político José Sócrates actuam no espaço mediático, como foi caso destas entrevistas e declarações mais recentes, e no lugar de informarem, invocam conspirações de configuração vaga, dizem -se alvos de interesses não nomeados, e configuram dificuldades e obstáculos não inteiramente explicados, não estão a informar.
Na verdade, e é esse o seu único objectivo, estão a tentar condicionar aqueles que neste momento consideram que se opõem aos seus interesses presentes e futuros. De modo mais directo, estão a intimidar, avisar e a tentar interferir nas acções dos outros membros das elites que, acreditam, nesta conjectura os querem atingir. Por outras palavras, estão a usar o espaço mediático para influenciar o circuito fechado em que vivem. O circuito das elites.
De modo cristalino, o eixo central que permite o fluxo permanente da ocultação premeditada por parte das nossas elites é o formado pelas empresas de media, o que nos leva, a partir daqui, para a segunda dimensão do fenómeno que estamos a trabalhar neste texto.
Neste ponto é preciso ser muito claro, a produção de informação de interesse público segundo a metodologia do jornalismo é extremamente complexa. Primeiro do que tudo, é muito importante nunca esquecer que o jornalista depende inteiramente do seu informador, a que grosseiramente chamamos fonte, seja ele humano ou documental.
Por sua vez, o informador produz informação determinada pelo seu interesse, e se este último muitas vezes é saudável, por exemplo o informador quer partilhar algo de que gosta de fazer, na esmagadora maioria dos casos o interesse do informador, ou da informação documental, é a de atingir um objectivo que traga algum tipo de ganho ao referido informador ou ao seu círculo.
A juntar a este contexto, o jornalismo dominante, apesar dos heroicos esforços contínuos dos praticantes do género jornalismo de investigação, é determinado decisivamente pela necessidade de publicar imediatamente e por uma agenda, a agenda mediática, que não controla.
Assim sendo, e é assim claramente, o jornalismo dominante é, e sempre foi, dependente e precário, é este o “core” da sua natureza, e não são justas as críticas permanentes de que os jornalistas são parciais, manipulados e servis porque o querem ser.
No entanto, no caso do jornalismo português dominante actual, há alguns outros pontos a ter em conta. Antes de tudo o mais, um importante grupo de jornalistas portugueses devia assumir – e escrevo jornalistas porque as empresas a que pertencem nunca o farão –, que são eles a elevar o nível de dependência do informador. Ou seja, publicam o que informador quer, seja o que ele diz, seja o que ele deixa consultar, e aqui podemos invocar muitos advogados e juristas, porque têm medo de o perder.
Depois, são também os jornalistas a consentir que os informadores e os entrevistados, como, novamente, se verifica nas entrevistas do juiz Carlos Alexandre e nas intervenções do político José Sócrates, digam coisas que sem dúvida têm sonoridade mediática, mas não são informação. Não o deviam fazer, não deviam publicar a vasta tipologia de ditos, de insinuações a conjecturas, para os quais os informadores não apresentam base factual, o que lhes retira qualquer interesse público.
Finalmente, nesta dimensão, e para abordar apenas os pontos que acho mais importante, um vasto conjunto de jornalistas, e não o todo, porque há excepções em todos os títulos, devia reconhecer que a dependência de um informador é muitas vezes determinada por razões comerciais, ou por estratégia empresarial, conforme se queira nomear.
Aprofundando, a escolha da informação publicada, por exemplo num caso judicial, como o que envolve José Sócrates, mas também numa OPA bancária, ou sobre uma nova lei fiscal, é determinada por aquilo que os accionistas e a direcção consideram que tem mais impacto no universo do público consumidor e no universo dos anunciantes do seu título ou produto jornalístico.
Não parece haver novidade aqui, o interesse do acionista foi sempre um dos obstáculos ao jornalismo. O que há novidade é que no caso do jornalismo português actual o interesse empresarial seja extensivo aos casos de justiça.
Assim, infelizmente, no cenário português, o jornalista, e o jornalismo, são simultaneamente alvo e agente do desprezo das elites pelo cidadão comum. Alvo porque as elites sabem que, na esmagadora maioria dos casos, os podem manipular. Agente porque são cúmplices na estratégia de ocultação premeditada praticada pelas elites aos cidadãos.
Resta-me escrever sobre a terceira dimensão, invocada no princípio deste texto.
Um dos momentos repetitivos que me faz mais confusão nas declarações do juiz Carlos Alexandre e do político José Sócrates, para nomear apenas os sujeitos centrais deste texto, sendo que poderia nomear também banqueiros, empresários, advogados ou outros membros de elites profissionais, é o de quando partilham, de forma amargurada, hipotéticas conspirações para os eliminar, ameaças indirectas ou implícitas, coincidências que visam, conjecturam, perturbá-los ou limitá-los.
O que me espanta é que homens com tanta experiência existencial e profissional ao mais alto nível revelem este incómodo, e que revelem também que as acções e movimentações referidas os surpreendem e afectam.
Se realmente estão a ser honestos no seu estado de espírito e análise, e há uma hipótese que assim não seja, mais uma vez por ocultação premeditada, estão a revelar um grau de infantilidade que não é compatível com a sua experiência.
O que estes homens, sejam eles juízes, políticos, advogados, banqueiros ou empresários, fazem todos os dias é interferir e destruir os interesses de outros, e estes interesses, na esmagadora maioria das vezes, estão relacionados com Poder e com riqueza. Deste modo, é absolutamente natural que os agentes dos interesses interferidos ou destruídos, reajam com tudo aquilo que possam reagir.
Se podem, ou acham adequado, jogam a “carta doce”. Subornam, prometem cargos, regalias ou ganhos. Se não podem, ou não acham adequado jogar a “carta doce”, jogam a “carta dura”. Mandam recado de destruição de carreira, ou de perda de aliados ou de riqueza, presente ou futura, prometem a divulgação, nos órgãos próprios ou ao público, de falhas, desvios ou crimes, usam e abusam dos seus aliados para destruir os seus alvos. Quando são amadores, ameaçam ou fazem mal a quem os está a afectar, ou aos seus familiares.
Numa fórmula simples, os agentes dos interesses interferidos ou destruídos estão a lutar pela sobrevivência, e pela sobrevivência vale quase sempre, e para quase todos nós, tudo.
De modo curioso, e uso a palavra sem qualquer espécie de ironia, em toda a minha vida os únicos profissionais que conheci que vivem bem com esta lei humana intuitiva, são alguns jornalistas e polícias. Mas, penso, não deveria ser assim. Porque quando o juiz Carlos Alexandre, ou o político José Sócrates, ou o banqueiro, ou o empresário, ou o advogado partilham publicamente, de modo choramingas, conspirações fantasiosas ou hipotéticas ameaças protagonizadas por teias difusas, não estão só a ser infantis, como já escrevi. Estão a contribuir para a infantilidade dos cidadãos portugueses, e esta é outra tipologia de desprezo.
Na verdade, neste ponto fundamental, era importante para todos nós cidadãos comuns que as elites fossem lúcidas, maduras e pedagógicas.