Salvo algum lapso, contei 17 Ordens Profissionais existentes em Portugal em 2023. Estas instituições voltaram a estar na agenda noticiosa e a causa dessa súbita actualidade é a mesma de sempre: dinheiro. Desde os tempos da Troika, que a União Europeia tem exigido a Portugal que retire poderes anti concorrenciais às Ordens Profissionais que, segundo a UE, condicionam e limitam o acesso a algumas profissões, seja por práticas e regulamentos considerados abusivos, seja pelo excessivo tempo de estágio e até por estágios não remunerados, que ao invés, são pagos pelo próprio estagiário, etc. etc. Quando em 2010 Portugal entrou em bancarrota e se tornou durante algum tempo um protectorado das instituições financeiras internacionais, entre as medidas exigidas ao país falido, constava a desregulação de boa parte do edifício jurídico em que assentam as Ordens Profissionais. Por questões de vária natureza, esse ponto da agenda passou entre as gotas da água da chuva e ficou tudo igual.

Acontece que, entretanto, surgiu a pandemia COVID e a guerra na Europa, e na sequência, a União Europeia lançou o Programa de Recuperação e Resiliência, vulgo PRR, com avultados fundos para todos os Estados membros. E como a reforma das Ordens Profissionais estava congelada, agora, segundo a vontade da UE, ou sai de vez do frigorifico, ou então parte dos fundos do PRR, fica também congelada. O Estado português não quer abdicar desse dinheiro e, portanto, a reforma, a bem ou a mal, irá mesmo prosseguir.

As Ordens Profissionais ainda que com outras designações, remontam ao Séc. XIX ou até antes. Mas no formato que actualmente as conhecemos, em Portugal foram fundadas no Séc. XX. As mais antigas e por esta sequência, são a Ordem dos Advogados de 1926, dos Engenheiros em 1936, Médicos em 1938, Farmacêuticos em 1972.

A criação e reconhecimento das Ordens Profissionais como instituições de interesse público e devidamente reguladas, derivava essencialmente da natureza liberal das profissões em causa. De facto, não tendo estes profissionais uma entidade patronal e sendo a sua actividade de relevância pública, alguma instituição deveria velar pela habilitação académica, disciplina e deontologia dos seus inscritos, sendo esta inscrição obrigatória para o exercício da profissão. Algo como uma licença para trabalhar, emitida por um organismo autoregulado, embora dentro dos limites do seu estatuto aprovado pelo poder legislativo.

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Com o passar do tempo, tudo isto se foi alterando, sendo hoje as Ordens Profissionais, instituições de ensino, de formação profissional, de promoção de projectos de investigação e desenvolvimento ou conferências financiadas por fundos europeus. Também emitem pronuncias, que seriam mais próprias na concertação social, opinam sobre assuntos de política geral e promovem ou apoiam expressamente, com cedência ou uso meios próprios, acções reivindicatórias salariais de trabalhadores por conta de outrem, muitas vezes não se conseguindo distinguir se agem como Ordens Profissionais ou como Sindicatos.

Também o conjunto de profissionais, escolhidos pelos dirigentes eleitos em cada mandato, que vivem praticamente do que recebem de cada Ordem por pertencer a grupos de trabalho, acções formativas, aulas, conferências, mesas redondas, debates e projectos, não é despiciendo e dá jeito à vida de muita gente.

Talvez por tudo isto, não seja de estranhar que até 1972, apenas existissem 4 (quatro) Ordens Profissionais e desde 1991, foram criadas e reconhecidas mais 13 (treze) novas Ordens. Qualquer relação deste súbito amor pela criação de Ordens Profissionais a partir de 1991 e os fundos europeus que captam e os empregos que garantem a pessoas próximos dos eleitos, é pura coincidência como já certamente concluíram.

Em 1991 surge a Ordem dos Médicos Veterinários e em 1998 e 1999 mais 6 (seis) novas Ordens: Enfermeiros; Biólogos; Fisioterapeutas; Economistas; Médicos Dentistas e Contabilistas Certificados. Em 2004, com a privatização dos serviços, surge, justificadamente neste caso, diga-se, a Ordem dos Notários. Em 2008 é a vez da Ordem dos Psicólogos. Em 2010 dos Nutricionistas e em 2015 as Ordens dos Despachantes, dos Revisores Oficiais de Contas e dos Solicitadores e Agentes de Execução.

Existiu na Europa até ao Séc. XIX, um designado Sacro Império Romano, com o qual se brincava, dizendo que nem era Sacro, nem era Império, nem era Romano. Ou seja, era uma ficção, uma formalidade ou um modo de conceder algumas mordomias e satisfazer vaidades várias. Algumas Ordens Profissionais, têm dificuldade em escapar a um sarcasmo semelhante. De facto, em muitas é notório que a esmagadora maioria dos profissionais das actividades que abrangem, exercem a actividade por conta de outrem e não são, por conseguinte, profissionais liberais, conforme o conceito que originou a fundação das Ordens. Também os profissionais da maioria destas Ordens, não está dependente de nelas se inscrever para exercer a profissão e finalmente não têm um mínimo poder deontológico e disciplinar sobre esses profissionais.

A Ordem Profissional que conheço e na qual estou inscrito há décadas, não é uma Ordem deste tipo, pois a Ordem dos Advogados tem efectivamente poderes para justificar a sua existência: obrigatoriedade de inscrição para o exercício da profissão; poder deontológico e disciplinar sobre os seus membros. Se outras Ordens têm estes poderes, então podem justificar-se como Ordens. Doutro modo, estamos mais no conceito de associação, cuja constituição é livre, mas não é uma Ordem Profissional.

Mesmo na Ordem dos Advogados já nos encontramos perante a escassez de verdadeiros profissionais liberais. De facto, uma parte dos advogados são sócios de sociedades de advogados e só praticam – se a dimensão da sociedade o permitir – uma advocacia de “relações públicas”; os restantes profissionais não sócios – melhor ou menos bem pagos – são trabalhadores com um contrato de trabalho “atípico” e os restantes advogados que não se encontram nas sociedades, ou são advogados de empresa com um puro contrato de trabalho dependente ou permanecem na chamada “prática isolada”. Se estes advogados da “prática isolada” fossem de facto independentes, então ainda teríamos um grupo suficiente de advogados livres que justificasse a Ordem como ela historicamente se afirmou. Mas até isto é uma ilusão. A larga maioria destes advogados independentes, muitos ainda jovens, têm como principal fonte de rendimento os honorários das chamadas “defesas oficiosas” que são pagas pelo Estado. Ou seja, o seu principal cliente, na verdade o seu empregador, é o Ministério da Justiça.

Por conseguinte, com o regime jurídico das Ordens Profissionais actual ou com aquele que por pressão comunitária o governo agora publicou, nada de muito significativo se vai alterar para os profissionais inscritos nas Ordens. Provavelmente os dirigentes eleitos, estarão mais condicionados no exercício das suas funções. Não faço juízos sobre a razoabilidade ou não de várias controversas alterações. Em todo o caso – e não há pior cego que aquele que não quer ver – mais que estas alterações legislativas, são os factos da vida real que foram diminuindo a importância das Ordens Profissionais e que as vão tornando irreversivelmente uma sala vazia.