Na introdução a Ideologias Políticas Contemporâneas, João Cardoso Rosas recorda como o pluralismo, primeiro religioso e depois político, se tornou um elemento central da época moderna:
“O constitucionalismo moderno, ao garantir as liberdades individuais, desde logo a liberdade de consciência e de religião, e ao escrevê-las numa lei fundamental, estabelece esse regime de tolerância e torna possível a convivência entre perspetivas religiosas diferentes ao longo do tempo. Mas a instituição desses regimes livres não podia deixar também de gerar o surgimento de perspetivas diferentes sobre o próprio Estado, a lei e a governação, ou seja, de diferentes ideologias políticas.”
Este aspeto foi especialmente explorado por Publius (pseudónimo utilizado por James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) nos Federalist Papers: um quadro de liberdade conduz ao pluralismo e esse pluralismo tende a gerar confronto entre os diferentes projetos políticos (entre fações, para usar a expressão de Madison). Foi, aliás, o que aconteceu nas sociedades gregas e romana da Antiguidade, que eram continuamente agitadas “com a rápida sucessão de revoluções em consequência das quais eram mantidas num estado de perpétua vibração entre os extremos da tirania e da anarquia” (Hamilton, n.º 9).
Este confronto entre fações conduziu a sociedades instáveis e violentas pelo que a ciência política moderna procurou mecanismos que controlassem o poder e a instabilidade das fações. A solução liberal não poderia passar nem pela supressão da liberdade, nem pelo primado da unidade (Madison, n.º 10); mas passaria por desenhos institucionais que eram desconhecidos dos antigos:
“A distribuição regular do poder por departamentos distintos, a introdução de balanços e controlos legislativos, a instituição de tribunais compostos por juízes que detêm os seus cargos enquanto bem cumprirem, a representação do povo na legislatura por deputados que ele próprio elegeu, tudo isto são descobertas inteiramente novas, ou que tiveram nos tempos modernos o seu principal progresso em direção à perfeição.” (Hamilton, n.º 9)
É no sistema construído a partir destes princípios que encontramos, nas palavras de Adriano Moreira em prefácio à tradução portuguesa, “a esperança de que [este] modelo substituísse a violência das fações pela razoabilidade dos compromissos”. E ainda que a prática não tenha estado sempre em respeito pela teoria, não podemos negar que os sistemas de democracia liberal foram os mais eficazes na recusa da violência política, diluindo a dinâmica de interesses e confrontos em instâncias de discussão, negociação e compromisso, ao mesmo tempo que garantiam liberdade, pluralismo e estabilidade.
O acesso privilegiado à verdade
A vivência em sociedades democráticas liberais implica, assim, reconhecer que a própria noção de bem comum está em disputa, que se submete a diferentes perspetivas e visões, mas que estas não podem ser impostas de modo violento – exige, no fundo, que saibamos prescindir da ideia de que temos um acesso privilegiado à verdade. A democracia torna-se o domínio da persuasão: aquilo que devemos fazer para avançar os nossos projetos políticos é convencer os nossos concidadãos de que a nossa proposta é melhor do que as alternativas e que deve, nessa medida, ser escolhida (nomeadamente através de eleições).
A flexibilidade das democracias liberais revela-se por serem capazes de admitir e incorporar múltiplas formas de protesto, desde manifestações de rua a grandoladas, mas tem como limite aqueles movimentos que reivindicam um acesso privilegiado à verdade e procuram impor o seu projeto político – ao invés de o sujeitar ao processo de discussão pública e escolha eleitoral. E isto porque considerar que a sua verdade é toda-a-verdade representa o maior dos perigos: o de se considerar legítimo fazer tudo o que for necessário até que a sua verdade passe a vigorar.
Ora, é precisamente este perigo que encontramos em muitos dos movimentos por “justiça climática” que têm ocupado o espaço público. Embora sejam apresentados pelos media como “ativistas climáticos” e imbuídos de uma certa auréola de santidade – como Sérgio Sousa Pinto captou bem, designando as três jovens que atacaram Duarte Cordeiro como “as três santinhas” –, importa ter em conta a agenda política que está subjacente a este tipo de ativismo. É que, por detrás desta preocupação com o clima, encontra-se uma agenda específica e que vai muito para lá das preocupações climáticas, mas que escapa de forma incompreensível ao escrutínio dos meios de comunicação social – como se, pelo facto de nos preocuparmos com a questão ambiental, tivéssemos necessariamente de defender as mesmas ideias ou o mesmo mundo que esses ativistas.
Consideremos os coletivos responsáveis pelas ações de terça-feira (ataque a Duarte Cordeiro) e quarta-feira (protesto na FIL): quer o coletivo Greve Climática Estudantil quer o coletivo Climaximo são coletivos de esquerda radical que lutam pelo fim do capitalismo e das sociedades liberais. A própria expressão “justiça climática”, com todo o poder que as palavras revelam para a manipulação política (afinal, quem é que é contra a justiça?), não disfarça a sua matriz ideológica. Usemos a definição de Bianca Castro, que pertence àqueles dois coletivos:
“Justiça climática diz-nos que temos de ver a crise climática com esta visão mais ampla de justiça social e de não deixar ninguém para trás, e assumir esta relação que a crise climática tem com as crises económicas, crises sociais e culturais e também com a luta pelos trabalhadores, com a luta feminista, com a luta antirracista, porque, no fundo, a crise climática veio muito destes padrões coloniais que ainda existem e que ainda estão presentes no nosso quotidiano.”
A maioria das pessoas não pensa em justiça climática desta forma, pois não? Ainda assim, estes “ativistas climáticos” são apresentados como se as suas ideias fossem dotadas de verdade e moralidade absolutas.
Importa deixar o meu argumento claro: não há nada de objetivamente errado com a defesa do anticapitalismo – como referi, no interior de uma sociedade livre é natural que surjam diferentes visões sobre a “melhor sociedade”. O problema reside no facto de estes movimentos, não se revelando capazes de ganhar a luta democrática ou sequer de aceitar as regras democráticas, quererem impor, à força de ações mediáticas e violentas, o seu modelo de sociedade. É esta reivindicação de acesso privilegiado à verdade que torna estes movimentos autoritários – e como a história nos ensinou, esses movimentos autoritários impõem-se sempre pela violência relativizando essa violência. Não surpreende, pois, que a resposta das “ativistas” ao ataque a Duarte Cordeiro tivesse sido: “Violência é a crise climática em que estamos.”
A politização das instituições
Perante a tentativa de normalizar a violência por parte destes movimentos, é compreensível que a maioria dos comentadores tenha destacado a ação intentada por seis jovens portugueses junto do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). A ação, explicada no Observador em oito tópicos, foi apresentada como sendo a atitude ajustada, na medida em que se traduz na utilização da via institucional do recurso judicial. Mas uma análise cuidada revela que o caso constituiu igualmente um enorme desafio às democracias liberais. Vejamos em que sentido.
O problema central deste caso resulta de se tratar de uma pretensão que se baseia em meros danos hipotéticos futuros: quando os jovens invocam o direito à vida, à privacidade e à não discriminação estão, na verdade, a invocar “futuríveis” (peço de empréstimo o termo à minha colega Ana Paula Brandão, que o usa para orientar a escolha de temas de mestrado), e um tribunal não se pode pronunciar sobre futuríveis, sobre coisas que não têm existência concreta ou são meras hipóteses académicas, sob pena de ficarem em causa os valores de certeza e segurança jurídicas, que são a base do Direito. Os cenários colocados (terem de ficar em casa mais tempo?) baseiam-se em meras suposições e as hipóteses científicas que invocam são apenas isso: hipóteses científicas que não podem ser interpretadas como sentenças finais (quantas projeções científicas falharam nas últimas décadas?). Este aspeto, que a maioria dos comentadores descarta (provavelmente por falta de formação jurídica), não é ignorado pelos juristas: Pedro Froufe, professor na Escola de Direito da Universidade do Minho e que, juntamente com duas colegas, elaborou um parecer sobre a admissibilidade da queixa pelo TEDH, reconhece que o simples facto de o Tribunal ter aceitado a queixa foi uma “inovação” e revela como o TEDH pode estar disposto a inovar dada a importância política do assunto.
Ora, esta parece ser realmente a razão pela qual um pedido tão frágil foi aceite: a atualidade política do tema que resulta da narrativa de emergência climática que nos tem sido imposta para lá de toda a razoabilidade ao ponto de não ser possível fazer perguntas ou colocar dúvidas. E o problema é que isto se traduz numa politização das instituições, nomeadamente dos tribunais, que devem estar fora do jogo político. Os tribunais não são instituições políticas e quando as instituições deixam de cumprir as suas funções e são ocupadas por outros interesses é todo o sistema que é posto em causa.
Notemos o pedido que é feito pelos queixosos: trata-se de uma obrigação de resultados que, numa análise atenta, se revela quase infantil. Se o cumprimento das metas acordadas fosse algo fácil de atingir, que governo não o escolheria fazer? Na verdade, a complexidade do tema resulta precisamente de as implicações das ações serem múltiplas e afetarem várias dimensões: recordemos os protestos dos coletes amarelos em França, as manifestações dos agricultores na Holanda e a nossa própria frustração com o elevado preço dos combustíveis submetidos a taxa de carbono. A maioria das medidas que têm sido percecionadas como tendo efeitos rápidos têm um profundo impacto na economia, significarão certamente um decrescimento ou empobrecimento e afetam, primeiro e em particular, as classes mais pobres. E isto significa que estamos no plano da política e não da justiça; significa que têm de ser representantes politicamente eleitos a tomar esse tipo de decisões, sendo sujeitos a escrutínio público e responsabilidade política.
Pedir ao tribunal que cumpra uma função para a qual não foi desenhado é adotar uma atitude de risco. Em vários países, pudemos já observar os efeitos sociais da judicialização dos direitos e da política: ela gera polarização política e social, pois abre a porta a que os tribunais sejam vistos como órgãos políticos, que podem ser assaltados pelas fações maioritárias. Mais uma vez: não é para isto que os tribunais servem dentro do esquema traçado pelos pais das democracias liberais. A desvalorização do princípio da separação de poderes e a defesa de inovações institucionais são antes mais um sintoma da crise do liberalismo – nessa medida, e ao contrário do que expressou Nuno Severiano Teixeira no Geometria Variável, esperemos que o tribunal não lhes dê razão.
Por fim, a narrativa que os jovens criaram, nomeadamente a partir dos trágicos incêndios de 2017, procura despertar o nosso lado emocional, mas não deixa de apresentar a característica que todas as narrativas emocionais têm: é simplista. Em sentido contrário, a realidade é extremamente complexa e ainda mais complexa no que aos incêndios diz respeito: quando ouvimos os especialistas pronunciarem-se sobre este tema, percebemos que há muitos fatores a contribuírem para os grandes incêndios e quase nunca as alterações climáticas são o fator principal (embora haja uma enorme pressão académica para que isso seja dito, como reconhece o cientista climático Patrick Brown). Mas a estratégia é antiga e eficaz: se conseguirmos contar a nossa história a partir de uma tragédia, podemos contar com o contributo dos sentimentos para suspender o juízo.
A tirania das emoções
Na verdade, o espaço público parece cada vez mais ocupado pelos afetos e emoções, mas desde os gregos antigos que sabemos que as emoções são um entrave a um pensamento sensato. Sabemo-lo também na nossa vida privada: quando os sentimentos nos assaltam, toldam-nos o raciocínio e impedem-nos de pensar adequadamente sobre os assuntos e tomar decisões ponderadas. E embora as emoções cumpram um papel fundamental em animais sociais como os seres humanos, no espaço público devemos evitar que elas condicionem os nossos comportamentos – para sermos capazes de ouvir o outro, reconhecer as suas ideias e estabelecer a arte do compromisso. Algo que o contexto atual nos impede de fazer adequadamente quanto a este tema.