Em 2011, a revista Time escolheu como pessoa do ano a figura do manifestante. Foi um ano de grande exultação popular nas ruas: depois dos protestos que ficariam conhecidos como Primavera Árabe, as manifestações espalharam-se pelos países ocidentais, desde a geração à rasca entre nós aos indignados espanhóis, até culminar no movimento Occupy. Esse ano, que Slavoj Žižek viria a consagrar como o ano em que sonhamos perigosamente, sedimentaria o argumento de que um regime verdadeiramente democrático está mais próximo dos movimentos que ocupavam as ruas do que da democracia formal representativa que estaria resgatada por interesses das elites económicas.

O argumento tem forte ressonância académica, mas, como muitas vezes acontece, acaba por originar uma contradição insuperável: é que as mesmas pessoas que asseveram a primazia da rua em certos protestos são as mesmas que invalidam com igual vigor os protestos com os quais não concordam. Recordemos como, poucos anos volvidos, em Portugal se criticaram as manifestações em defesa das escolas com contrato de associação ou, em França, os coletes amarelos. Esta atitude de porteiro (gatekeeping) – que consiste em reclamar o direito de dizer quem é de esquerda, o que é democrático, que ideias são legítimas, etc. – visa silenciar vozes contrárias e deve, por isso, ser denunciada, mas escapa à pergunta que pretendo aqui explorar: em regimes democráticos liberais, os protestos de rua são legítimos ou põem em causa a democracia?

O que é a democracia?

Para responder àquela questão, temos de começar por esclarecer o que queremos dizer com a palavra democracia (um conceito essencialmente contestado, como diz W.B. Gallie). E podemos fazê-lo a partir de uma perspetiva histórica: a democracia dos antigos seria uma forma de governo assente na participação direta dos cidadãos; a democracia dos modernos (a nossa democracia) seria uma democracia indireta ou representativa, na medida em que o exercício do poder cabe a representantes, escolhidos em eleições.

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É o espírito da antiguidade que alguns convocam para afirmar que uma verdadeira democracia tem de significar a participação direta dos cidadãos (nomeadamente, em assembleias populares): só assim o regime se torna legítimo. E de acordo com esta perspetiva, a democracia representativa surgiria como uma versão defeituosa da democracia verdadeira.

Esta posição desvaloriza, no entanto, um aspeto importante, como chamam a atenção Bernard Manin e Nadia Urbinati: ao contrário de ser um sistema defeituoso, a democracia representativa foi desenhada precisamente para superar as fragilidades da democracia dos antigos. O que os filósofos dos séculos XVIII e XIX, profundos conhecedores da antiguidade, tentaram fazer foi superar as dificuldades que identificavam nas democracias gregas e nas repúblicas populares romanas.

Que correções foram então promovidas?

O elemento central da democracia representativa assenta num princípio fundamental de mediação: todas as estruturas, mecanismos e instituições são pensados para garantir um processo de mediação que permita diluir a possibilidade de conflito e violência. Em primeiro lugar, a existência de representantes permitiria que, por um lado, as decisões políticas sejam tomadas não em função do interesse próprio, mas com imparcialidade; e, por outro, que um princípio de racionalidade prevaleça sobre uma lógica de emoções e sentimentos – para tal, os representantes devem ter alguma margem de distanciamento e liberdade na sua atuação. Em segundo lugar, a distribuição de funções por diferentes instituições eliminaria a possibilidade de concentração do poder. Em terceiro lugar, os partidos garantiriam a apresentação de medidas amadurecidas e refletidas: como Ricardo Araújo Pereira costuma dizer, a política não pode estar ao nível das coisas que dizemos ao balcão de um café; e os partidos serviriam, então, para transformar preocupações sociais em medidas concretas, razoáveis e exequíveis. A partir daí, um regime democrático liberal permitiria o necessário processo de discussão, negociação e compromisso – que só é possível se formos capazes de nos afastar de interesses próprios e reconhecermos que as sociedades vivem de visões e interesses plurais, mas que, apesar disso, tem de ser possível chegar a um compromisso.

Significa isto, como disse José Miguel Júdice recentemente, que “a população ignara no meio da rua deve ser impedida de destruir as decisões dos órgãos legitimados pelo voto”?

Na verdade, a maioria dos autores considera que a democracia representativa deve garantir que os representados possam expressar as suas queixas e reivindicações no espaço público e pressionar os representantes ou governantes. Embora privilegie o momento eleitoral, a democracia liberal não se limita a esse momento e deve compreender a possibilidade de manifestações, protestos e tentativas de condicionar a ação dos que se encontram em exercício. (Pensemos nos protestos de ontem junto ao Palácio de Cristal.)

Mas que limites haverá para essas manifestações?

A crise da democracia representativa

As palavras de José Miguel Júdice foram proferidas a propósito dos tumultos em França contra a decisão de alterar a idade de reforma. Júdice defendeu que se tratava de uma “violenta recusa da aceitação de uma decisão legal e legítima” e que, portanto, era uma tentativa de “subverter o estado de direito”. Equiparou ainda estes protestos ao que aconteceu nos Estados Unidos, com a invasão do Capitólio em 2021, e no Brasil, com a invasão ao Palácio do Planalto, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal no início deste ano. Tratar-se-ia de um assalto à democracia, pelo que se exige uma condenação clara deste tipo de manifestações.

A violência dos protestos assume aqui relevância, mas devemos ter em conta as tradições nacionais específicas e a França é um país que conta com uma longa tradição de protestos de rua violentos, como recordam Jaime Nogueira Pinto e Paulo Tunhas. Ainda assim, se considerarmos o número incrível de pessoas que tem protestado ao longo das últimas semanas, é possível afirmar que aquela violência constitui um comportamento minoritário. Por outro lado, tumultos violentos podem ser interpretados, na linha de Maquiavel, como importantes para a estabilidade do próprio sistema: o autor renascentista considerava que foi a dinâmica tumultuosa entre a plebe e os patrícios a permitir a estabilidade da república romana.

Mas a intuição de Júdice parece acertada quando afirma que os nossos tempos se assemelham aos idos de Março: há, de facto, uma deterioração do sistema representativo tal como o apresentei teoricamente, e que nos faz recordar os finais da república. Na verdade, as características que consolidariam a democracia dos modernos como uma melhoria face à democracia dos antigos parecem ter entrado em processo de obsolescência – em particular no que diz respeito ao mecanismo de representação, com um fosso crescente entre representantes e representados, entre o mundo político e o mundo real. E o problema desse fosso é que os representantes deixam de representar os eleitores para passarem a representar-se a si mesmos e aos seus interesses (às vezes pessoais, muitas vezes partidários). Esse afastamento provoca um sentimento generalizado de desconfiança face ao sistema político e tem ampliado a radicalização dos protestos antissistema.

Ora, essa falta de confiança política tem-se feito acompanhar pela perda de confiança num modelo de organização social que deixou de funcionar adequadamente – desde os serviços públicos aos apoios sociais –, pelo que a revolta antissistema não nos deve surpreender: sabemos que a legitimidade dos regimes políticos está diretamente dependente da sua utilidade. Na verdade, essa revolta e aqueles protestos devem ser antes entendidos como sinais de que o sistema está a falhar (e, nessa medida, são eminentemente democráticos). Mas se confundirmos os sintomas com a doença (e isso é particularmente evidente em Portugal), não conseguiremos compreender se ainda é possível salvar a democracia liberal ou se estamos realmente condenados a olhar os nossos tempos como os idos de Março.