Depois de uma ameaça em 2009, uma espécie de Primavera Árabe atrasada parece ter chegado ao Irão. Há sete dias consecutivos, primeiro a população rural, depois os jovens, e depois a classe média foram enchendo as ruas de diversas cidades num coro desencontrado, mas persistente, de clamores. Sabemos pouco acerca destes manifestantes e do que verdadeiramente desejam. Não parecem ser um grupo organizado (apesar de se desconfiar que os protestam tenham começado com um empurrãozinho do partido conservador, que não se conforma com a reeleição dos reformistas de Hassan Rouhani), mas rapidamente se perdeu o controle.
Os manifestantes queixam-se, principalmente, do rumo da economia. O acordo nuclear de 2015, com o G5+1 (largamente apoiado pela população) garantia o levantamento das sanções económicas que desafogaria o estado das coisas. Mas, como acontece muitas vezes com estados autoritários, o cidadão comum não chegou a sentir o seu efeito, e novas sanções impostas por Washington o ano passado deixaram o regime sem grande margem de manobra. Os números oficiais apontam para um desemprego elevado, na casa dos 10 por cento, que incide essencialmente na população jovem e feminina. Meios nemos oficiais dizem que os números são muito mais altos. Daí que não seja de estranhar que a maioria dos manifestantes sejam de classe média-baixa e que as demonstrações de insatisfação tenham começado em cidades de província antes de se estender ao resto do país. Poderá ter sido o aumento do preço dos alimentos essenciais a gota de água que levou os iranianos à rua. Não seria inédito. Lembrem-se que no Brasil, em 2013, as ruas das grandes cidades encheram-se devido ao anúncio da subida do preço dos bilhetes de autocarro.
Mas não é tudo. Os iranianos queixam-se da corrupção entre as classes governantes. Protestam contra a política externa que é muito dispendiosa porque o estado que apoia o Hezbollah, o regime sírio, a fação xiita da Líbia. Ainda, em pano de fundo, estão rivalidades religiosas. Mais uma vez é incerto quem quer o quê, mas há analistas que vão refletindo sobre uma componente político-legal relacionada com a lei islâmica, em que parte dos manifestantes falam de saudosismo do Xá deposto no final dos anos 1970, outros exigem mais liberdades, ainda que à medida iraniana – que atenta contra os direitos humanos seja qual for o ponto de vista – o regime esteja a proceder gradualmente a reformas, ou melhor, ordena que se feche os olhos a práticas proibidas pela muito estrita sharia observada no Irão. Também há quem desconfie que esta atitude tenho feito manifestantes mais tradicionais rejeitarem a “modernidade” de Rouhani. Serão menos, mas também estão lá.
Muitos analistas internacionais perguntam-se onde estão as grandes potências, que costumam perfilar-se cada vez que há uma agitação deste tipo no mundo árabe. Influenciar o Irão seria, teoricamente, uma oportunidade a não perder, agora que se joga o futuro da hegemonia regional. No entanto, as reações internacionais são parcas e cautelosas, e o Twitter ajuda-nos a perceber que existe uma efetiva ausência de vontade política de intromissão nos assuntos internos no Irão.
Parte da explicação será o facto de o ou os movimentos de rebelião serem ainda tão confusos, que seja difícil perceber quem, e como, apoiar. Mas há razões de fundo que dizem muitos sobre as mudanças recentes nesta parte Atlântica do mundo.
Em primeiro lugar, com os últimos quase 30 anos vieram com duas lições: a intromissão em conflitos internos, especialmente a intromissão armada, não resulta. E que a imposição da democracia por países terceiros ainda resulta menos. Está estatisticamente e empiricamente provado há alguns anos por vários cientistas políticos como Robert Bates ou Paul Collier, mas como escreveu último, estas ideias tornaram-se uma crença e deixaram de ser escrutinadas pela realidade factual. Aliás, como se pode ver pela guerra na Síria e o conflito na Líbia, a intromissão de países terceiros pode trazer problemas imprevistos e de muito difícil resolução, como a crise de refugiados que tem assolado a Europa nos últimos anos, criando os problemas internos nos estados europeus que se conhecem. Esta foi talvez a mais dura lição da última década: guerras humanitárias têm quase sempre resultados negativos, quer para os estados onde se opera a intervenção, quer para os estados que intervêm.
Em segundo lugar, e apesar de em política não ser preciso ter a casa toda em ordem para agir internacionalmente, seria muito difícil gerar consensos relativamente a uma ação mais concertada no Irão. Os Estados Unidos deixaram de ter vontade política de intervir em situações deste tipo – como foi dito e escrito pelo presidente Trump várias vezes – e a Europa está mergulhada numa crise identitária tão grande que seria quase impossível gerar consenso à volta de uma causa destas sem se correr o risco de uma fratura quase definitiva. Resta a Rússia. Mas quanto às intenções de Moscovo, que ambiciona uma posição de influência no Médio Oriente, pouco sabemos. E desconfiamos que nada têm a ver com liberdade ou democracia.
Finalmente, o argumento mais importante: o Ocidente parece ter deixado de crer na universalidade do seu próprio modelo. Durante muitos anos, a seguir ao fim da Guerra Fria, a esmagadora maioria das elites dos dois lados dos Atlântico acreditava verdadeiramente que estava do lado certo da história e que tinha obrigações morais de conduzir outros no mesmo sentido. Isso acabou. Ou melhor, foi acabando aos poucos, e a última estocada foi precisamente a Primavera Árabe. Os egípcios escolheram ser governados pela Irmandade Muçulmana; a NATO terá conseguido evitar um massacre na Líbia, mas a situação interna, cinco anos depois, mantém-se caótica; na Síria, as forças do regime, apoiadas pelo próprio Irão e pela Rússia, vão mantendo a supremacia numa guerra civil que tem sido terrivelmente sangrenta e parece estar longe de acabar. Não, não defendo que a democracia seja uma prerrogativa só de alguns. Mas todos tivemos que aprender que ou as populações dos estados têm vontade de a construir (e é preciso muita, porque é um processo longo, demorado e difícil) ou então nada feito. E talvez esta alteração na perspetiva ideológica no Ocidente relativamente ao mundo seja uma das mais drásticas mudanças do século XXI.
As teocracias também se abatem? Talvez. Mas ao Irão ainda faltam dois elementos fundamentais: o apoio da classe intelectual não envolvida com a elite política (que apareceu em 2009, mas ainda não se mostrou desta vez) e, mais importante, o apoio das forças militares. E tradicionalmente a Guarda Revolucionária é fiel ao governo. Vamos ver como se desenrolam os acontecimentos. Mas por enquanto, os iranianos em revolta estão entregues a si próprios. E possivelmente assim continuarão.