O comportamento dos povos para com os seus mortos é um sinal de maturidade e de compaixão para com os outros e si próprios. E isso é visível nos momentos trágicos.
Mas para que eu não seja acusado de russófono ou de coisa que o valha, vou traduzir fragmentos de um editorial do jornal electrónico russo Gazeta.ru. Não se trata de um órgão de comunicação da oposição da Rússia, mas também não é um cego seguidor do Kremlin. Tenta sobreviver numa difícil situação.
O Gazeta.ru começa por escrever que, na Holanda, começaram a sepultar as vítimas da catástrofe do avião malaio e acrescenta:
“Basta comparar como se despedem das vítimas de tragédias no Ocidente que, segundo a nossa versão, ‘não tem alma’, e recordar como acompanhámos as vítimas das tragédias russas para compreender muito sobre eles e sobre nós. Os estados onde não dão valor à vida humana ficam indiferentes à sua morte. E enquanto for assim, não teremos no nosso país uma verdadeira sociedade civil, não obstante todas as palavras mágicas patrióticas”.
O jornal ilustra o contraste descrevendo a forma como na Holanda foram recebidas as vítimas da catástrofe do Boeing:
“Em Eindhoven todas as partidas e chegadas foram cancelados no aeroporto. Os comboios pararam, Por todo o país tocaram sinos de igrejas. Em Amesterdão teve lugar uma manifestação fúnebre com muitos milhares de pessoas. O país está de luto, um luto que as pessoas vivem de forma sincera e pública. A catástrofe do Boeing e a morte nela de cidadãos da Holanda é realmente uma catástrofe nacional, sentida por todo um povo de um pequeno reino no centro da Europa”.
Em relação aos EUA, o jornal constata que o mesmo acontece, embora as catástrofes sejam muito mais frequentes.
E na Rússia?, pergunta o o Gazeta.ru. “No nosso país, nas palavras estão sempre prontos para defender os russos onde quer que eles estejam, ou pata defender toda a Humanidade dos seus inimigos, mas pouco ligam a cada indivíduo tomado separadamente”.
Para confirmar esta diferença de atitudes, o jornal pede para se comparar as fotos e imagens da Holanda e dos EUA com as dos funerais das vítimas dos numerosos actos terroristas que abalaram a Rússia ou da recente avaria no Metropolitano de Moscovo: “Mesmo em Moscovo, para já não falar da restante Rússia, não houve rasto de dor nacional. Sim, houve um dia de luto. Sim, o Estado prometeu secamente pagar as compensações monetários previstas às famílias dos mortos. Mas, em geral, o povo foi afastado da dor ‘alheia’. A televisão e os órgãos de comunicação social públicos também preferiram desviar-se desse tema ‘desagradável’, ao mesmo tempo que continuavam a acusar, como é habitual, o Ocidente de não ter alma e a Ucrânia de fascismo. Flores do local de mais uma tragédia no metro ou no aeroporto (onde é que, no nosso país, não morreram pessoas nos últimos anos devido a actos terroristas e catástrofes tecnológicas!) e o aumento brusco da atividade de doação de sangue por apelo dos médicos são quase os únicos sinais de que na Rússia há verdadeiros cidadãos do seu país com sentimentos humanos normais. Claro que o seu potencial seria muito maior, mas ‘não é preciso falar do negativo’, gritam os funcionários dos mais diversos níveis que receiam muito qualquer iniciativa de massas a partir de baixo. ‘Não falem muito disso e, dentro de uma semana, as pessoas esquecerão’. Do Estado não parte o apelo à união, a inclinar a cabeça em homenagem”.
E o jornal coloca uma pergunta brutal: “Onde estão as cerimónias fúnebres nacionais por toda a Rússia em memória das vítimas do acto terrorista em Beslan, cujo décimo aniversário se realizará em Setembro?”.
Segundo o editorial, fica-se com a impressão de que os dirigentes do país querem que os cidadãos esquecem o mais rápido possível as tragédias. Mas porquê? “Nos dias de verdadeiras tragédias nacionais, a solidariedade une a nação mais fortemente do que as conversas sobre a espiritualidade especial, os ‘fixadores’ e os ‘valores tradicionais’”.
E conclui: “a atitude – histórica, religiosa, tradicional – da nação para com os que morreram inocentes, injustamente, é um sinal importantíssimo da sua grandeza e até da sua existência. Neste sentido, por enquanto não temos uma nação, mas ‘grupos de pessoas’ que vivem neste ‘território’”.
Mesmo que neste editorial se exagere alguma coisa – e eu não penso que se exagera – o que nele se escreve devia chegar para obrigar os russos a pensar. E nós também…
(O Observador vai começar a partilhar com o blogue “Da Rússia” algumas crónicas de José Milhazes, durante muitos anos correspondente em Moscovo dos principais órgãos de informação portugueses)