Até agora a humanidade criou grandemente três tipos de sociedades, uma na base no parentesco e na paixão como sofrimento conjunto, a Comunidade; uma segunda com base no poder e na subordinação, o Reino/Estado; uma terceira com base nos interesses e nos contratos, a Associação/Cidade. Estamos, no entanto, no dealbar de uma quarta sociedade, a digital, com base na multidão, sua autonomização, gestão e algoritmia.

Os tipos de sociedade sobrepõem-se e cada tipo anterior autonomizou estruturas sociais específicas. A Comunidade consolidou a noção de família, casa e vizinhos; o Reino/Estado possibilitou-nos o monopólio da violência, a ordem e a representação; a Associação/Cidade autonomizou o mercado, os contratos, o condominio. Esta quarta sociedade possibilita-nos, para já, a multidão.

É verdade que o processo de civilização é, por si só, o de uma aprendizagem da multidão: num pêndulo entre a sua libertação e o seu controlo. Durante muito tempo, a multidão só era possível em situação excepcional (cinegética, agrícola, construtiva, religiosa ou militar), enquanto momento conjuntural de comunidades que se juntam. A multidão começa a estruturar-se como infraestrutura cativa de escravos, servos, militares ou religiosos ao serviço de uma hierarquia, seja de reinos ou impérios, típicos de sociedades teocráticas ou/e hidráulicas clássicas. Já num tempo de autonomização da associação foi possível, também numa lógica de poder, pelo carisma de determinados políticos e pela espetacularização do Reino/Estado, agregar multidões não cativas. Em tempos mais recentes, a multidão secularizada (das festas, peregrinações, feiras e mercados e da cidade em geral que historicamente se foi explorando) multiplicou-se e exponenciou-se, pelo turismo e pela indústria do espectáculo. Em parte, é verdade que todo o processo civilizatório (produção e agregação em cidades) pode ser visto como uma relação entre o medo/esperança na multidão e o seu gradual controlo pelas diversas instituições que se criam para o efeito. Portanto, poderemos sempre dizer que a relação que existe entre o digital e a multidão é apenas a repetição desse primeiro momento. Quer dizer, ainda de medo e esperança e de parco controlo. Ainda assim, é o momento que vivemos.

No dealbar desta quarta sociedade, a multidão tornou-se banal. Não me refiro ao ranking dos influencers/influenciadores digitais ou ‘creators’ (criadores de conteúdos) que, a nível mundial, a Forbes começou a publicar em 2017…curiosamente no ano da tomada de posse de Donald Trump após a primeira eleição como presidente. Esses ganham milhões e têm centenas ou dezenas de milhões de seguidores. Por exemplo o primeiro em 2024 (Mr. Beast) tem 324 milhões de seguidores e ganha 85 milhões de dólares. Tão pouco me refiro ao ranking dos influencers portugueses cujos gostos ou visualizações estão na ordem dos milhões. Refiro-me, antes, ao facto, evidenciado por estes modelos, que qualquer pessoa ou um pequeno grupo de pessoas com uma intenção é capaz de criar na sociedade digital uma multidão. E com efeitos evidentes no mundo não digital. Refiro-me ao facto de uma qualquer situação capaz de criar perturbação emocional (o assassinato de uma pessoa em Portugal; uma catástrofe ambiental em Espanha…) pode facilmente mobilizar uma multidão (‘active crowd’). Se no caso espanhol, uma sociedade providência em multidão auto-ordenada foi mais rápida que o Estado; no caso português, pelo menos dois dias depois da situação critica ainda havia instigações ao ódio nas redes sociais que activavam os gangues. O Estado parece estar a ser ultrapassado pelas multidões digitais, quer elas sejam solidárias ou subversivas.

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O capitalismo já tinha entendido isso claramente estabelecendo relações entre o online e o offline, evidentes por exemplo nas multidões do Black Friday. Mas no plano das causas, talvez um dos casos mais relevantes seja o ‘Greta Effect’: a ‘Greve escolar pelo Clima’ às sextas feiras em 2018 na Suécia feita uma criança com autismo que deu origem a um movimento global conhecido como FFF – Fridays for Future. Não pretendo aqui fazer um historial da relação entre media sociais e causas/movimentos sociais pois para isso teríamos de recuar à ´Primavera árabe’ (2010-2012); ‘Black Lives Matter’ (2013 ao presente), o #MeeToo (2017 ao presente); o ‘Movimento Pró Democracia de Hong Kong’ (2019-2020); #VidasNegrasImportam (2020) no Brasil e alguns outros. E claro que ao nível de processos políticos, a gestão das multidões efectuadas nos medias sociais foram fundamentais no Brexit, assim como na primeira eleição de Donald Trump (ambas em 2016), na eleição de Jair Bolsonaro (2018), na invasão do Capitólio (2021) e na invasão do Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal em Brasília-Brasil (2023).

As multidões movem-se em função de emoções partilhadas: o amor ou o ódio; a solidariedade ou a projecção da culpa num qualquer ‘bode expiatório’. Percebendo a banalidade com a qual a circulação de informações nos media sociais e a sua mobilização emocional pode criar uma multidão, e o quanto tal multidão pode ser incontrolável, não é difícil passar para a sua gestão ou mesmo a algoritmia das multidões, quer enquanto interesse por parte dos mobilizadores, quer por regulação por parte dos Estados e entidades transnacionais.

Se em 2016 Trump é provável que tenha sido o primeiro presidente a ganhar umas eleições em função das media sociais (o Facebook, o Google, o Twiter), assim como de uma estratégia de publicidade segmentada e fake news; a eleição de 2024 é o culminar de uma engenharia de redes sociais. Certamente que a complexidade é grande, desde processos em pirâmide e lotarias até narrativas complexas de heróis predestinados, mistura de Hermes e Prometeu. Vale a pena referir a narrativa ‘QAnon’, assim como a ‘MAGA’/’American dream’ como processos de gestão das multidões entre o ódio e o amor. QAnon é uma narrativa de conspiração mundial por parte do Mal contra um herói épico, a favor do Bem (Donald Trump), possibilitando assim quer a projecção da culpa em convenientes outros, quer a identificação com Donald Trump enquanto herói épico, predestinado, que a sobrevivência a um atentado veio apenas confirmar. O Lema do ‘QAnon’ é, muito adequadamente, ‘onde for um, vamos todos nós’. E este herói épico é a personificação da América, enquanto ‘MAGA’ – Make America Great Again! Fazer parte de uma narrativa em que um herói fundador consegue vencer o Mal (o ‘Estado Profundo’) e curar uma sociedade, prometendo de novo o ‘American dream’ é fazer parte de um mito fundador e de uma comunidade.

Claro que todo o enredo criado em torno de QAnon e de MAGA/American dream é em si mesmo fantástico e dá-nos uma ideia de que as narrativas e os mitos fundadores, os heróis e os rituais ancestrais têm ainda (e sempre) um papel não menosprezável na mobilização das pessoas. E, portanto, a Ciência Política e o jornalismo (já agora) não deviam desprezá-los em privilégio de uma análise do eleitor racional que vota na economia, na democracia, contra ou a favor do aborto e por aí fora. Mas vale a pena também enfatizar, nestas narrativas, a nostalgia da comunidade como elemento importante enquanto compensação por parte das multidões digitais em relação a uma inequação sempre sentida entre a primeira sociedade (Comunidade) e as duas seguintes (Reino/Estado e Associação/Cidade). Simmel, em 1902, escrevia que o ser humano tem necessidade de uma vida em comunidade mas a metrópole (grande cidade moderna) impede-o fazendo com que seja tratado (e tratando os outros) em função de categorias, de forma impessoal. Esta inconciliação crónica entre a Comunidade e o Estado e a Cidade (o problema entre o individuo e a persona ou o desejo de cada um de ser exclusivo e o facto de ser uma mera categoria) é uma doença mental da sociedade moderna. E, curiosamente ou não, a sociedade digital (quer nos gatinhos ou cãezinhos que se partilham, quer nas multidões pequenas ou grandes em que nos envolvemos) parece providenciar, pelas emoções partilhadas, uma imitação, uma projecção ou uma compensação da Comunidade em falta.

Ainda que na pré-história da era digital, temos com urgência de desenvolver uma literacia adequada a estes novos tempos. Não é possível ignorar ou fazer de conta… pois entre e para além dos bairros e da cidade e, mesmo, entre e para além do Estado e do mercado, a autonomização, gestão e algoritmia da multidão em lógicas emocionais de medo e esperança, solidariedade e culpa fazem parte da nossa vida de todos os dias: online e offline.