Em junho a Senhora Ministra da Saúde disse, na Comissão de Saúde da Assembleia da República, que há lideranças fracas na saúde. A melhor citação, julgo ser a mais fidedigna que encontrei, reza o seguinte:

“Nós temos lideranças fracas. Nós precisamos de lideranças à frente dos hospitais e à frente dos serviços que sejam mobilizadoras, que atraiam os jovens profissionais, que os tratem bem. Nós não tratamos bem as pessoas na Administração Pública. Os nossos departamentos de recursos humanos demoram meses a responder a um médico, a um farmacêutico, a um TSDT [Técnico Superior de Diagnóstico e Terapêutica], isto não é aceitável”.

Nada de mais evidente e do conhecimento público. Só faltou dizer que estes atrasos se devem, em grande parte, a um excessivo centralismo que acaba por fazer depender tudo do Ministério que gere as Finanças e Administração Pública. Apesar de a Constituição o determinar, na verdade, não há administração descentralizada e desconcentrada no SNS. E, sei do que falo, os sindicatos não ajudam, não facilitam, não flexibilizam, nem promovem a celeridade na gestão de pessoal. Os acordos coletivos na função pública, imutáveis e inamovíveis, bloqueiam o desempenho do Estado.

Ora, esta banalidade que a Ministra disse levantou ondas de indignação que passaram por demissões patéticas, a bem da Nação, manifestações de repúdio, vestes rasgadas (gosto sempre de trazer esta imagem), artigos temáticos que repetem as vulgaridades que se conhecem sob o tema e acabam por reforçar as razões da Ministra, além de várias tentativas de algum aproveitamento político-partidário, enfim, o habitual chorrilho de disparates que caracterizam as emocionadas e hipócritas declarações sobre o estado do SNS e do sistema de saúde em geral. Logo, nada de novo no que a Senhora Ministra disse e nas reações da urbi e da orbi (no que ao de Luso tem o Mundo). Cite-se o Luís, “um Rei fraco faz fraca a forte gente”, um cliché que nos garante duas coisas; a) a liderança é um tema antigo e devemos recordar Shakespeare, “the fault, dear Brutus, is not in our stars, but in ourselves”, numa fala de Júlio César e b) é uma preocupação anterior ao SNS.

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Note-se que a Ministra não se referiu apenas a administrações de hospitais e nem sequer apenas aos seus conselhos de administração. Foi um arraso solidário para todos os que devem liderar. Terá sido? Nem isso, porque a admissão do óbvio, que há lideranças fracas, não se aplica a toda a gente. Na verdade, há lideranças fracas em todos os setores da administração pública, nas empresas privadas, nas forças de segurança e nas armadas, na política, no governo e até para os lados de Belém. Convirá também não esquecer, sem querer entrar em discussões sobre definições de gestão vs liderança, que a incapacidade para ser líder não tem de ser um atestado de incompetência profissional. Só há líderes fracos? Nada disso. Há intermédios, fortes, fracos nuns dias e melhores noutros. No liderómetro, não sei onde estarei. Mas, considerando as funções que desempenho, a nível intermédio, devo preocupar-me com isso e desde logo agradeço a quem me possa ajudar a fazer melhor.

As declarações da Prof. Ana Paula Martins conterão um exercício de autocrítica e reconhecimento de que a sua liderança, para que possa inspirar todos, está, desde esse dia, sob escrutínio ainda maior. Foi corajosa, muito mesmo, a Senhora Ministra da Saúde. E fez mal, quando, sabe-se lá sob que pressão e mau aconselhamento, veio dizer que tinha sido mal interpretada. Se foi, paciência. A frase ministerial foi inequívoca e se houve quem não a tenha percebido, terá sido por dificuldades mais graves do que a falta de capacidade de liderança. A liderança, uma coisa que todos sabem o que é, mas ninguém define de forma clara e universalmente aceite, é um dos tijolos dos sistemas de saúde. Não vos vou maçar porquê, apesar de o ser por mais razões das que parecem imediatamente evidentes. Deixo a bibliografia. Portanto, sem liderança não há política de saúde e a liderança é um instrumento operacional das políticas de saúde.

Continuando nos lugares-comuns que às vezes também fazem falta, importa repetir que a liderança mais significativa na saúde é a que transforma. Devo acrescentar que não acredito nas caracterizações de “estilos” de liderança, embora sejam bom tema para encher artigos e livros. Acredito nas diferentes personalidades de quem lidera e sei que os melhores líderes são os que percebem as matérias e as pessoas que lideram, se adaptam e não se acomodam. A liderança aprende-se, treina-se, exerce-se com ouvidos e palavras, pelo exemplo, ganhando o respeito, mostrando competência, sendo humilde, assumindo responsabilidades e delegando sem se esconder, arcando com culpas, agregando, motivando, gerando iniciativas, reconhecendo méritos, retribuindo com justiça, distinguindo e premiando, valorizando, apostando na formação das pessoas e das equipas, acompanhando resultados, providenciando os meios para que os resultados aconteçam, procurando a inovação evolutiva, etc., poderia continuar por mais uns atributos/obrigações/implicações associadas aos líderes e que todos conhecem.

Há coragem na Senhora Ministra quando reconhece que há lideranças fracas na saúde. É que as lideranças, a transformação dos gestores em líderes, está bloqueada por uma administração pública com regras demasiado estritas, que o Tribunal de Contas não deixa de vigiar, com responsabilidades pecuniárias pessoais dos administradores e gestores, com orçamentos insuficientes para os objetivos pretendidos, por falta de políticas claras e duradoiras, por ausência de estatuto remuneratório para os administradores hospitalares que convença os mais capazes e ambiciosos a abraçar o risco de liderar equipas ou instituições públicas de prestação de cuidados de saúde.

Foi corajosa a Senhora Ministra e agora vai ter de promover o aparecimento das lideranças que nos faltam, onde elas faltarem. A Ministra assumiu a responsabilidade, enquanto líder política da saúde, de fazer tudo o que estiver ao seu alcance para transformar os líderes que forem fracos em líderes mais fortes. O que não a isenta de, quando constatar incapacidade de extrair mais das pessoas a quem se confiaram funções de liderança, substituir esses líderes e encaminhar essas pessoas para funções que possam desempenhar melhor. Juízo que também se impõe aos que, entretanto, tem nomeado para cargos dirigentes e a quem, com a afirmação proferida na Assembleia, impôs altos padrões de liderança. Ainda bem que o fez.

Foi corajosa e a coragem terá de durar quando tiver de avaliar o que foi feito.  Mas para que os líderes sejam melhores e nem todos, só uns poucos, são líderes naturais, tem de criar condições para que a liderança se manifeste e floresça. Desde logo por garantir mais formação em exercício. Mas também por criar e desenvolver um ambiente apropriado para as lideranças colaborativas. Olhando para os diferentes níveis de chefias – e ser chefe não garante que se seja líder – apostando em modelos que possam seguir o desempenho clínico e a produção de valor em saúde, retribuindo em função de resultados e não apenas pelas unidades produzidas, sejam elas números de doentes ou horas de presença. É preciso reformar e a tarefa está muito dificultada por termos um SNS que alguns dizem ter transformado quando o deixaram ainda pior e mais ingovernável (uma opinião pessoal que merece ser debatida para lá do “acho que” e da borrasca em que se transformaram os debates sobre quase tudo em Portugal). Hospitais e Centros de Saúde não se gerem como uma outra empresa qualquer. O processo de fusão é complexo, demora tempo, há que construir uma nova cultura que seja a síntese complementar de cuidados primários, hospitalares, continuados, paliativos e de reabilitação. Não deveria ter acontecido num repente, por via administrativa, como se houvesse a garantia de que 1+1 = 2 ou, quem sabe, 3. E este dado, a súbita criação de ULS a todo o vapor, trouxe desafios novos para lideranças que, por enquanto, continuam a funcionar de forma separada e concorrencial.

Sim, a liderança é um tema incontornável na política de saúde e ainda bem que, finalmente, alguém o trouxe de forma tão veemente para a discussão pública. Agora, se há fraquezas, é preciso identificá-las e corrigi-las, incluindo pela via da alteração legislativa que se deverá estender para lá da Saúde, desde logo às Finanças e à Administração Pública. Os trabalhadores da saúde não são “funcionários públicos” como todos os outros, como não serão os professores, os oficiais de justiça, os polícias, os militares, etc. As auditorias deverão ser uma oportunidade para que o Estado aprenda sobre os labirintos jurídicos que foi criando, acumulando legislação conflituante e de difícil interpretação ou aplicação. “One size des not fit all”.

Mais uma nota. Uma instituição prestadora de cuidados de saúde na esfera do SNS não segue os mesmos princípios da gestão das unidades privadas, mas, a título de exemplo, depois da COVID-19 porque não se aprofundaram os regimes de trabalho não presencial? Avaliou-se? Foi tudo péssimo? Será que o controlo biométrico de presença e regras iguais para todos, em termos de horários, condicionam melhores resultados? Será que estar presente, apenas isso, determina boa produção? As regras de há 30, 20, ou até 10 anos, ainda fazem sentido? Uma instituição do SNS não pode ser gerida como uma unidade privada, apesar de estarmos sempre a ouvir o contrário. Todas as empresas do mesmo negócio terão pontos comuns, mas os objetivos da gestão e as lideranças não poderão ser iguais. O que não quer dizer que os setores público, social e privado não possam e não devam aprender uns com os outros.

Desde já, sendo só um princípio, há que saudar a decisão de começar auditorias dedicadas aos serviços de recursos humanos das instituições de saúde. Que sejam rápidas, completas e esclarecedoras. Se dessas auditorias resultarem melhorias, terá sido bom começo.