Eu sei. Saltei a parte IV que virá em momento mais oportuno. A 5ª parte desta autópsia estará dividida em dois. Falemos de médicos. Do que são e dos seus problemas. Depois, tentativamente, escreverei sobre soluções. Poderia escrever sobre outras profissões da saúde, mas a de médico serve para ilustrar o essencial do que se passa com os profissionais que constroem o sistema de saúde em Portugal. A minha opção, ao escrever agora sobre médicos, não desvaloriza qualquer outra profissão de saúde. Também se pode e deve falar de médicos porque há um processo reivindicativo em curso e sem solução à vista. O que não quer dizer que seja um processo insolúvel. É verdade, sou médico e parte interessada. Há um conflito de interesses desde já sublinhado. Por isso e para que leiam outra coisa no mesmo patamar de argumentação, remeto para o artigo de Gustavo Carona. Em todo o caso, para clarificar os limites do meu conflito de interesses, declaro que só exerço clínica no SNS.

Os médicos estão no meio de greves. São legítimas. Mas arriscadas e pouco eficazes. Indispõem os doentes e as suas famílias. Servem para o Estado poupar salários, já que só se aplicam ao SNS. No setor privado, que remédio, os médicos não podem fazer greves e talvez achem que nem teriam razões para as fazerem, embora os subsistemas e companhias de seguros também paguem miseravelmente. Mas os médicos terão sempre a solução de só trabalharem para clientes que pagam do seu bolso. Hoje é mais difícil. Os clientes estão mais pobres.

Outro conflito de interesses tem que ver com o facto de eu não fazer greve. Não posso, por força dos serviços a que não poderia, nem quero, escapar. Mas não condeno, longe de mim, quem opte por fazer greve. É fácil manipular as greves dos médicos contra os trabalhadores, como em muitas outras profissões no setor de serviços. Não é difícil ao patronato dizer que “eles não querem trabalhar”. É a imagem que passa.  No caso da saúde, ainda mais fácil. E as greves na saúde estão “cheias” de serviços mínimos. Não poderia ser de outra forma e isso tira-lhes eficácia. Existem outras formas de luta que doem mais ao Estado. Mas, reconheço, as greves são mais visíveis. E, bem vistas as coisas, outras formas de luta que possam representar mais gastos em saúde por parte do Estado têm riscos associados à perda de qualidade na prestação. Ou seja, o estímulo ao excesso não justificado de cuidados é uma arma de dois gumes e até eticamente condenável. Tal como o pedido de “escusa de responsabilidades” que é um absurdo legal e prático. Dizem que os médicos são como padres, mas uma greve de padres, com o devido respeito pelos crentes, não lhes traria nenhum prejuízo material.  Conclusão, os médicos, ao contrário do que se possa supor, têm meios limitados para impor as suas reivindicações, desde que não ultrapassem os limites da ética. Mas, há sempre a possibilidade de irmos todos para Espanha e voltar uma semana depois. Não vai acontecer.

Os médicos têm características e exigências que lhes conferem o direito de exigir muito mais do que o Estado lhes dá. Aquilo que nos tem sido imposto, quase desde a criação do SNS, é muito menos do que os transtornos que as greves possam causar. Transtornos causados a quem não tem culpa, os nossos doentes.

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O processo de formação dos médicos é longo, muito longo, maior do que na maioria das profissões. Doze a treze anos até ser especialista e depois de um ingresso altamente competitivo nas escolas médicas. Dificilmente pode ser encurtado. Na verdade, a formação médica é contínua e continuada e prossegue para lá da escola e dos internatos.

Somos insubstituíveis, em cada nível, enquanto profissionais com saberes específicos. Mesmo com task sharing, de que eu sou defensor acérrimo.

Temos um sistema hierárquico próprio que os empregadores muitas vezes não respeitam e nem sequer entendem.

Temos responsabilidades e riscos que não são contabilizados, nem considerados para fins de cálculo da remuneração. As progressões de responsabilidade e saber não são acompanhadas de acréscimo salarial equivalente.

Como ganhamos mal em cada trabalho que temos, com a exceção de alguns casos de produção massificada de atos comparativamente baratos, precisamos de acumular trabalhos/empregos e horas de trabalho para lá do razoável. Horas de trabalho, para lá do razoável e do que é saudável, que não são só horas de serviço de urgência.

A essas horas juntam-se outras tantas de formação e estudo continuado até ao fim da nossa vida profissional, mesmo que o “fim” só ocorra para lá dos 80 anos. Os médicos são profissionais que terminam a sua vida profissional muito tarde. São “despedidos” do SNS quando fazem 70, mas continuam, muitas vezes, a trabalhar. Porque precisam, já que as reformas são insuficientes para o estilo de vida a que têm direito – aqui não há diferença para a generalidade da população nacional – e gostam do que fazem. Os médicos eram, normalmente, profissionais que gostavam de estar no SNS. Isso perdeu-se. A verdade é que uma vez fora do SNS, mesmo que por motivo de idade, continuam a trabalhar e, por inerência, a estudar.

As horas de formação e estudo não são contabilizadas na remuneração dos médicos do SNS. Nem sequer, a não ser que os médicos constituam empresas, há “descontos” no IRS para as despesas pessoais com formação. Logo, há uma dependência das indústrias da saúde que não é benéfica para ninguém. E não é equitativa entre médicos.

O sistema remuneratório padrão dos médicos do SNS não tem nenhuma flexibilidade contratual de horários e os incentivos estão geralmente desalinhados dos resultados em saúde. Ressalvo que sou muito crítico da generalização de sistemas de pagamento adicional no SNS, quando apenas por atos clínicos, “para lá” de um número previamente acordado. Todavia, a manutenção da lógica de remuneração igual para trabalho diferente é perversa.

O processo de intervenção médica é complexo, seja uma “simples” consulta, uma cirurgia ou a realização e relato de meios complementares de diagnóstico. Mesmo quando aparentemente breve, a consulta médica implica interrogar, observar, ouvir, compreender, interpretar meios complementares de diagnóstico, decidir, inserir notas nos registos, pedir mais exames e prescrever tratamento(s). Até a decisão de não prescrever uma terapêutica exige muito saber. O empregador, neste caso o Estado, tende a avaliar mal o trabalho médico e entende que pode contabilizar tudo com métricas que não apreciam as dificuldades próprias de cada especialidade, desvalorizando as especialidades hospitalares, entendendo que é sempre possível fazer mais. Poderia ser, com condições diferentes, sendo que estas “condições” extravasam as áreas de intervenção médica estrita.

As condições em que os médicos trabalham no SNS não são uniformemente boas. São muitas vezes más. Há instituições sem ligação permanente à internet, sem biblioteca, sem acesso generalizado a secretariado clínico para apoio, até mesmo sem telefone, sem uma mesa secretária para uso pessoal exclusivo, sem computador pessoal atualizado ou impressora. Tenho tido a sorte de trabalhar num hospital que, mesmo com as limitações impostas pela antiguidade e falta de espaço, tem tentado dar condições bem acima das mínimas. Mas não é igual em todo o lado e nem se percebe porque não há, por exemplo, acesso gratuito, generalizado para todos os médicos do SNS, a uma biblioteca on line.

Há uma carga de trabalho burocrático e consumidor de tempo, porventura só realizável por médicos, que não é contabilizado. Ler e responder a emails, escrever pedidos de medicamentos, elaborar normas clínicas, contribuir para o sistema de qualidade da instituição, fazer registos estatísticos, fazer relatórios médicos, passar baixas, participar em reuniões clínicas imprescindíveis, lutar contra sistemas de registo clínico eletrónico que foram mal concebidos, não servem para os fins a que deviam estar destinados e não comunicam entre todas as instituições do SNS, para já não falar do sistema de saúde. Há trabalho que se acumula e coisas que nunca chegam a ser feitas. Isto gera angústia em pessoas formatadas para serem excelentes e sob observação constante. Não se perdoam falhas aos médicos.

Logo, os médicos têm um desgaste que é mensurável pelas elevadas taxas de “burn out” e presentismo. Isso mesmo, os médicos faltam pouco ao trabalho, comparativamente com outras profissões, aceitando, naturalmente, trabalhar quando estão doentes. Ser médico é cansativo. Cansa física, mental e espiritualmente. Os médicos adoecem e “não podem” adoecer. Tratamos de nós, sem reconhecer que não estamos bem, automedicados, aconselhados em “consultas de corredor”.

Provavelmente, a maioria das pessoas não faz ideia de como os médicos sofrem com o que veem, ouvem e muitas vezes têm de dizer.

Deliberadamente usei sempre a palavras “médicos” que em bom Português serve para ambos os sexos. Mas já deve haver mais médicas do que médicos. Ou será uma questão de poucos anos para que assim seja. Com tudo o que descrevi atrás, imaginem a conciliação do trabalho com a família para qualquer médico, mais uma vez para ambos os sexos, e as dificuldades da maternidade para uma médica.

Por tudo isto, os médicos podem e devem pedir mais e a população que nós servimos deve estar do nosso lado. Sei o que é negociar com médicos em tempos difíceis. Debaixo de um processo de ajustamento financeiro como nunca tinha havido em Portugal. Mas mesmo com um Estado falido e sob as rigorosíssimas regras da tróika foi possível encontrar um acordo que era temporário e cumpriria ao Governo seguinte aprofundar. Não o fizeram e persistem no erro.

O resultado desta parte da autópsia é que os médicos precisam de atenção urgente, não só por serem um “bem” escasso, e o ministério da saúde pode, quando quer, ajustar-se aos requisitos das finanças públicas. Bastaria que o governo de Portugal entendesse a imprescindibilidade do capital humano na prestação de cuidados de saúde. As pessoas são mais importantes do que a tecnologia que as serve.