Graças ao programa do Diogo Batáguas, pude conhecer algumas pérolas daquela que é “a geração mais bem preparada de sempre”. Como é preciso ser sintético – o que é difícil diante de tamanha qualidade – destaco o jovem que, numa entrevista, afirmou que “a condução da sociedade tem que ser o mais próximo possível do que está na Bíblia” e que, por isso, se deve instaurar um “autoritarismo de base cristã”, e um outro que confessou não acreditar em democracia, mas sim “em ditadores que sabem mais do que a multidão (…) porque – não sei se sabes – foi a multidão que condenou Jesus Cristo”.
Finalmente algo refrescante. Quando daqui a uns tempos, no Europeu, se cantar o hino, e entoarmos “levantai hoje, de novo, o esplendor de Portugal”, lembremo-nos que Portugal não só criou Camões ou Pessoa, mas, também, estes dois enormes filósofos da teoria política. Diz-se, tantas vezes, que os nossos melhores cérebros estão a emigrar, e, na verdade, eles ainda nem sequer partiram do país.
A ideia de se defender um “autoritarismo de base cristã” – para assim se ir ao encontro dos ensinamentos da Bíblia – é tão desprovida de sentido, que, tal como Diogo Batáguas afirmou no programa – e para que seja percetível o que se está realmente a propor – isso corresponderia a criar um regime próximo àquele estabelecido pelos talibãs, uma organização autocrática de base islâmica, que acredita estar a cumprir os ensinamentos do Corão através da forma fundamentalista pela qual o lê e aplica. E aqui não há diferença entre Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, ou outra qualquer confissão religiosa. Um autoritarismo de base cristã não seria melhor que um autoritarismo de base islâmica. Porque, em primeiro lugar, um autoritarismo é sempre um autoritarismo, mesmo que seja do meu clube e, em segundo, porque é claro que, qualquer que seja a religião, sendo lida de maneira fundamentalista, tem um gigante potencial destrutivo.
É certo que a história do Cristianismo é ambivalente, que, como todos os grandes fluxos históricos, possui luz e sombras, que ainda hoje são visíveis, mas há algo claro, ao longo do tempo: o Cristianismo reconciliou-se com a modernidade – haverá até quem diga que não existiria modernidade sem ele – e hoje não é, claramente, a fonte de desordem global. Hoje o Papa não lança cruzadas, não excomunga líderes políticos, não monta o seu exército no campo de batalha.
Por outro lado, dizer-se que a democracia não presta, porque foi a multidão que mandou matar Jesus, possui o mesmo raciocínio que quando alguém diz que as batatas deviam acabar, porque uma vez “o meu tio Alfredo comeu uma e morreu”. Mas desengane-se quem acha que isto é sinal de irracionalidade. Antes pelo contrário. Durante o ensino secundário, tinha grandes dificuldades em perceber que falácia correspondia à afirmação que estava no teste, por não me parecer ser igual a nenhuma das que estudámos. Neste caso, tenho a mesma dificuldade, mas porque acho que este argumento têm-nas lá todas metidas dentro. Pelos vistos, o mundo está a evoluir depressa demais.
Ora, não me quero armar em Mário Soares no debate com Álvaro Cunhal, mas, nós podemos dizer que o Cristianismo não é incompatível com a Monarquia nem com a República, que tão pouco é incompatível com abordagens mais socialistas ou mais liberais da economia, mas o Cristianismo será sempre incompatível com um regime sem estado de direito, sem liberdade ou separação de poderes, como será incompatível com a promoção da desigualdade, e isso é a definição mais acabada de autocracia ou ditadura. E tudo isto, está na Bíblia. Basta saber ler e não ficar só pelas ilustrações.
É verdade que há quem ache que o Cristianismo, e em particular a Igreja Católica, se mundanizou, se aburguesou e perdeu a essência. Mas isso é o mesmo que o único pacote de salsichas fora da validade da prateleira, olhar para todos os outros e achar que eles é que estão estragados.
Ainda esta semana houve quem publicasse uma foto da Ponte 25 de Abril, onde, num pilar, junto ao rio, surge grafitado o seguinte: “Ponte Salazar”. O proprietário da publicação achou por bem acrescentar: “apenas bom senso”. Lamentavelmente, tratava-se de um membro do Clero. Se calhar, foi aí que os dois jovens foram beber. Mas mesmo que sejam três carros em contramão, não significa que estejam no sentido regulamentar do trânsito.