Há dois tipos de análise política. A primeira é séria e assertiva, disseca os programas eleitorais e escalpeliza os grandes discursos. A segunda é pateta, desajeitada, desvia atenções, entretém-se com fait-divers. Ora, como não tenho elegância para a primeira, fico-me pela segunda.

André Ventura foi à Renascença no dia 15 de Fevereiro. Na reta final da entrevista, na secção “Desculpa, mas vais ter que perguntar”, e contrariamente ao comum na política portuguesa – se a compararmos, por exemplo, com a americana – Ventura afirma ser uma “pessoa com muita fé”, mas confessa também cometer erros, exageros, e nem sempre acertar. Porém, justifica: “o próprio Jesus Cristo errou de vez em quando, e ele próprio [Jesus Cristo, entenda-se] cometeu alguns excessos”.

Ficamos mais descansados. Há analistas que veem semelhanças entre a propaganda do Chega e a de outros líderes de extrema-direita. Mas, na semana passada, ficámos a saber que, quando André Ventura fez as importantes pregações, onde enunciou os novos slogans, “Mentirosa é a tua tia, pá!”, “Vai para a tua terra”, “Prostituta política”, estava a inspirar-se em Nosso Senhor.

Como não é de espantar, Ventura foi mais longe. Referiu que “como disse S. Paulo, aos mornos Deus vomita-os” e que S. Paulo “dizia outra coisa, o que tens a fazer fá-lo depressa”. Ora, é triste que nenhuma destas citações seja de S. Paulo. A primeira é do livro do Apocalipse, lá para o capítulo 3, versículo 16. A segunda, por outro lado, é esquisita. Se Ventura é o destinatário da frase – ou seja, aquele que tem que agir depressa – era importante que o líder do Chega soubesse que essa é a frase que Jesus diz a Judas antes da traição, no Evangelho de S. João.

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Na verdade, é pena que aquele que se intitula “seguidor de S. Paulo”, não faça sempre transparecer no seu discurso aquela frase, essa sim escrita mesmo pelo apóstolo, onde é claro que: “Não há judeu nem grego; escravo nem livre; homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gal. 3, 28).

Mas voltando atrás. Para um cristão, uma coisa é clara: Jesus não pecou, o equivalente religioso ao termo errar, ainda que pecar seja muito mais que um simples erro. Na teologia cristã, pecar não é uma “falha”, como quando nos esquecemos da carteira em casa e somos apanhados numa operação STOP, pecar é ferir o amor em si mesmo, uma espécie de infeção que afeta o coração até o levar a assentir ao egocentrismo. Numa linguagem que Ventura compreenderá: pecar é “corromper” a possibilidade e a liberdade que cada um é. Nesse sentido, para os cristãos, Jesus nunca pecou, por ser, simultaneamente, a Humanidade e a Divindade em sentido integral. E isso ajuda a perceber que tal afirmação não é um simples capricho teológico. É, antes de tudo, uma confissão do relevo do ser humano. Se Jesus é a plenitude da Humanidade, ao não pecar, mostra que não é pecar que é próprio da Humanidade, como habitualmente se pensa, mas que, próprio da Humanidade é não pecar. Por isso é que a tarefa do Cristianismo é sempre ajudar o ser humano a tornar-se aquilo que é: Humanidade. Porque é humanizando e humanizando-se nas suas relações, que o ser humano se torna mais divino.

Isto leva-me a outra reflexão. Quando André Ventura foi confrontado com a sua posição sobre a comunidade cigana, diz o seguinte: “Não acho que Deus seja parte nisso”. É estranho que Deus lhe tenha confiado a missão de mudar Portugal, mas tenha deixado alguns temas de lado. Mas isto até joga a desfavor do líder do Chega. Se Deus não é parte das suas posições sobre a comunidade cigana, só podemos pensar que, quando Ventura pensa sozinho, acaba sempre por redundar em demagogia.

A verdade é que, como mostramos acima, para os cristãos Deus é parte – ou melhor, é “a” parte – de tudo o que fazemos. Não existe uma vida ou uma forma de pensar que seja exterior ou separada de Deus. Seja ela sobre a comunidade cigana, sobre o ministério público, sobre onde compramos a nossa comida, ou sobre se vale ou não a pena votar.

Por isso é que o Cristianismo é uma proposta “política” e uma “doutrina social”. Não lhe é igual se o Estado respeita ou não a dignidade humana. Não lhe é indiferente se existe ou não um destino universal dos bens. Nem é neutral ou apático face aos direitos humanos.

No fundo, dizer “não acho que Deus seja parte nisso” é o equivalente a dizer “agora valem petardos de força”. Uma forma de assegurar que agora tudo é permitido, porque ninguém está a ver.