As recentes declarações do Presidente da Câmara de Loures, relativas ao despejo de indivíduos envolvidos em episódios de violência que residam em habitações camarárias, levantou o habitual coro de indignação “politicamente correcta”.
O referido coro, transformava o autarca em vilão, colando-o à extrema direita e acusando-o de violar o direito à habitação, ignorando totalmente o grau de violência praticada nas várias noites que duraram os tumultos e o sinal que o Estado (entendido em sentido amplo, incluindo autarquias) tem que dar, de rejeição total dos actos de violência a que assistimos, desde logo pela reposição da normalidade (que falhou), pela punição através do processo próprio e por um conjunto de medidas que demonstrem que aqueles comportamentos não são tolerados.
E nesta última parte que se enquadram as declarações do Presidente da Câmara, que me parecem adequadas e proporcionais ao grau de violência desencadeada.
Antes de continuar, importa referir que a questão tem duas vertentes, a jurídica, que se refere à viabilidade dos despejos no contexto dos contratos/regulamentos (se não estiver prevista só poderá vigorar para casos futuros) de arrendamento dos fogos em causa e a política, que se refere à correcção da medida em termos de proporcionalidade e adequação aos comportamentos verificados.
Aqui vou referir-me sobretudo à questão política, não só porque não conheço os contratos e regulamentos, mas também porque a questão é essencialmente política e é a esse nível que tem sido tratada, embora com algumas referências a eventual “inconstitucionalidade”, a que também me referirei adiante.
Compete ao Estado e à administração pública em geral garantir os direitos fundamentais dos cidadãos, gerindo equilíbrios nem sempre fáceis de garantir, nomeadamente o clássico equilíbrio entre o direito fundamental à liberdade, que é a base da democracia e o direito à segurança, sem a qual a liberdade não pode ser exercida na sua plenitude.
Curiosamente, e não é por acaso, os dois direitos estão consagrados na mesma disposição constitucional, o artigo 27.º n.º 1 “Todos têm direito à liberdade e à segurança”, sem prejuízo de várias outras disposições relativas a liberdades específicas, nomeadamente de expressão, de consciência e religião, de deslocação, manifestação, etc.
É inquestionável que a segurança (como a liberdade) é um valor fundamental da vida em sociedade, sem a qual o exercício de todos os outros é limitado ou mesmo impedido. Não há liberdade de expressão se em qualquer parte do território não puder usar em segurança um distintivo de qualquer orientação política, seja do Bloco de Esquerda, do Chega ou de qualquer outra, não há liberdade de deslocação se houver zonas ou bairros onde qualquer cidadão ou membro das forças de segurança não possa entrar sem ser atacado e não há direito à vida e à integridade física, se houver um risco sério de uma simples viagem de autocarro poder acabar com ataques de cocktails Molotov ou a casa em que se habita puder ser incendiada pelo choque de um autocarro a arder.
É pelas razões expostas que o “contrato social” em que se baseiam as sociedades democráticas, implica um conjunto de direitos e deveres, prevendo desvantagens associadas ao incumprimento de deveres que, nos casos mais graves, nomeadamente os que implicam a violação de direitos de outros, pode levar à privação do direito à liberdade (pena de prisão), e que pode implicar também algumas limitações de direitos associados à condenação por alguns crimes, mesmo depois do cumprimento das penas.
Exemplificando, não é inconstitucional, por eventual violação do “direito ao trabalho”, a aplicação de uma longa sanção acessória de inibição de conduzir, a um motorista profissional condenado pelo crime de condução perigosa, sendo a sanção acessória justificada, entre outras razões, pelo direito à vida e integridade física dos outros utilizadores da estrada.
Feito o enquadramento, importa não branquear a gravidade das acções de violências ocorridas, que são ignoradas pela maioria dos que se têm dedicado a “crucificar” o autarca.
A onda de violência que durou cerca de uma semana, foi de extrema gravidade não só pelas suas consequências reais e potenciais (só não houve mais vítimas graves ou mesmo mortais, porque o primeiro autocarro incendiado foi “travado” por um automóvel antes de embater num prédio de habitação), mas também pela forma deliberada e organizada como foram desenvolvidas as acções, com incursões em vários bairros com localizações diferentes para melhor frustrar a acção das forças de segurança, com um planeamento quase militar (os organizadores admitiram à comunicação social ter montado “emboscadas” à polícia), que constitui uma verdadeira “declaração de guerra” ao Estado Democrático e às comunidades em que se inserem.
Estes e outros factos demonstram que a morte do cidadão que marcou o início dos tumultos, foi apenas um pretexto para o lançamento da violência, que não se limitou aos ataques à polícia (o que por si só já não seria aceitável), mas se estenderam a todas as entidades que asseguram a protecção da sociedade, como aos bombeiros e à própria comunidade.
Mesmo que a referida morte tenha constituído um excesso, ela não pode ser imputada a toda a instituição policial, da mesma forma que as muitas mortes de agentes de polícia que têm ocorrido nos últimos anos, não podem ser imputadas à totalidade das comunidades ou bairros de origem dos assassinos.
E aqui, não posso deixar de notar o aproveitamento extremista desde logo feito pelos dois pólos da comunidade política, da direita radical, que logo concluiu que a morte se justificava totalmente, até à esquerda radical, que logo concluiu que se tratava de violência policial injustificada, ambas sem estar de posse de todos os elementos e factos necessários à avaliação do que se passou, o que demonstra bem a polaridade e irracionalidade que cada vez mais domina o debate político.
Exemplo dessa polaridade e irracionalidade é a tendência para avaliar as propostas com base em quem as faz e não pelo seu conteúdo, o que distorce e envenena o debate democrático. Por muito que me repugnem os sistemas ditatoriais apoiados pelo Partido Comunista ou os igualmente ditatoriais cujo lema era o “Deus, Pátria, Família” também adoptado pelo Chega, bem como tudo o que lhes está associado, isso não significa que não possa concordar pontualmente com propostas oriundas de um ou outro desses partidos (como já aconteceu), continuando a discordar totalmente das respectivas orientações globais.
Importa assumir claramente que não é admissível que se ataque o Estado de Direito Democrático com acções de violência extrema contra a vida, a integridade física e a propriedade (adquirida com grande sacrifício) dos cidadãos, frequentemente os próprios vizinhos, e simultâneamente se usufrua das condições excepcionais (porque não estão disponíveis para a maioria dos cidadãos, que as pagam) proporcionadas por esse Estado de Direito e até se possa utilizar essas condições como base para a organização dos ataques (as referidas “emboscadas”) contra a comunidade que os acolhe e lhes dá abrigo.
A integração de quem vive em condições mais precárias e de maior dificuldade, sejam imigrantes ou não, não passa só pelo apoio do Estado e da comunidade em proporcionar-lhes as condições para essa integração (embora esse apoio seja importante), passa também e em grande medida pelo esforço de integração dos próprios, como foi demonstrado pelos portugueses em França que, pelo trabalho árduo e pelo esforço de integração na comunidade, ultrapassaram a miséria e a discriminação, sendo hoje uma comunidade respeitada e representada em todos os meios, nomeadamente o político e empresarial.
O único aspecto em que poderá assistir alguma razão aos críticos da medida proposta, é o problema da penalização da restante família do infractor, mas isso é outra questão, embora importante, para a qual deverá ser estudada uma solução que permita acomodar as duas necessidades conflituantes (que pode não ser fácil) e não põe em causa o princípio de não permitir que quem ataca a comunidade, sobretudo se fôr o titular do arrendamento, beneficie das vantagens proporcionadas pela mesma comunidade, subjacente às declarações do autarca, que está certo e não deve ser subvertido.
Importa ainda referir, que este tipo de ataque a todos os que se afastam da cartilha do “politicamente correcto”, é um dos mais fortes contributos para o crescimento da extrema-direita, porque faz passar a ideia junto da população em geral, que os políticos da direita radical são os únicos que se preocupam com as questões de segurança, o que é enganador porque a história mostra que quando os extremistas do espectro político chegam ao poder, é o próprio Estado a pôr em causa a segurança dos cidadãos, pela acção do aparelho repressivo que lhe está associado.
O cada vez mais frequente ataque violento às opiniões que se afastam da cartilha referida no parágrafo anterior e o chamado “cancelamento” da sua opinião, aproxima-se perigosamente da censura dos regimes ditatoriais, destruindo aquela que é talvez a primeira das liberdades, a de expressão, sobre a qual assenta todo o edifício do Estado Democrático, que tanto custou a construir.
P.S. O autor não adere ao acordo ortográfico de 1990.