O aproximar das datas, tanto do 25 de Novembro como dos 50 anos do 25 de Abril, e a polémica já instalada trazem novamente à actualidade a questão do 25 de Novembro e das respectivas comemorações.

Como “declaração de interesses” sou militante do PS desde Maio de 1974, na altura com 15 anos, embora discorde das suas políticas dos últimos (muitos) anos, tendo sido membro da Comissão Nacional entre 2009 e 2011 (eleito na lista de oposição a José Sócrates, como sempre fiz questão de sublinhar) e participei activamente nas lutas (algumas no sentido literal) do PREC, pelo que é com desgosto que vejo o PS renegar a herança do 25 de Novembro, para o qual contribuiu de forma  determinante, com a sua luta sem tréguas e mobilização popular contra a deriva totalitária gonçalvista.

Faz parte do património histórico e até “genético” do PS o combate às versões portuguesas dos dois totalitarismos que flagelaram o século XX,  o fascista corporizado na ditadura salazarista e o comunista corporizado na curta mas intensa tentativa de impôr a chamada “ditadura do proletariado”, que ficou conhecida como PREC (abreviatura  de Processo Revolucionário em Curso).

Importa aqui lembrar que o PREC constituiu um verdadeira assalto totalitário ao poder, que incluiu uma espécie de polícia política, o COPCON (Comando Operacional do Continente, comandado por Otelo),  que tinha poderes quase absolutos, utilizava mandados de captura em  branco e prendia pessoas sem processo judicial, num universo muito  abrangente, que ia dos dirigentes dos grupos económicos aos militantes  do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado).

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Há um exemplo que uso com frequência, que nos permite uma perspectiva do que foi o PREC, que situo entre o 28 de Setembro de  1974 (apesar de o primeiro passo já ter sido dado em Julho, com a nomeação de Vasco Gonçalves para Primeiro Ministro) e o 25 de  Novembro de 1975, que é o “Caso República”.

No período da ditadura, o República era o único jornal diário aberta e claramente contra o regime, mas apesar disso conseguiu sobreviver, com enormes dificuldades, muita coragem e sacrifício, aos 48 anos da ditadura. No entanto, por manter no pós 25 de Abril a sua postura de defesa intransigente da Liberdade, não resistiu a alguns meses de  PREC, tendo sido tomado de assalto pela “Comissão de Trabalhadores” para calar a linha editorial independente do jornal, crítico do poder gonçalvista (como sempre tinha sido em relação ao poder salazarista e, nos últimos anos, marcelista), tendo posteriormente sido usurpado por uma comissão nomeada pelo COPCON, o que conduziu ao fim do jornal.

O argumento de que o 25 de Novembro “divide”, muito utilizado ultimamente para demonizar a data e lhe retirar a importância histórica que tem, é um absurdo total, porque todos os momentos históricos dividem, é por isso que são históricos.

O 25 de Abril também divide, entre os que queriam a Liberdade e a consideram um valor fundamental e os partidários ou saudosistas da ditadura, e o mesmo se pode dizer em relação a todos os momentos de libertação, porque todos eles dividem os que querem a Liberdade e os que estão do lado errado da História. Assim, apagar o 25 de Novembro com o pretexto de que “é uma data que divide” não tem qualquer  sentido.

O que efectivamente dividiu os portugueses foi o PREC, que nos levou à  beira da guerra civil (que se conseguiu evitar no 25 de Novembro), com  a tentativa de impôr uma nova ditadura e o País a ferro e fogo, entre ocupações selvagens a Sul e assaltos às sedes do PCP a Norte, cerco e sequestro de deputados da Assembleia Constituinte (para citar apenas uns poucos exemplos) e toda a conflitualidade que lhe está associada, entre o Partido Comunista e os seus satélites (partidos que, embora  divergissem do PC quanto à “pureza” ideológica do marxismo-leninismo (ML), convergiam com ele nas acções destinadas a destruir a democracia, apelidada “burguesa”) e as forças democráticas, lideradas pelo PS, que tinha como principais figuras Mário Soares e Salgado  Zenha.

Além do PC e satélites e das forças pró-democracia lideradas pelo PS,  destacava-se o já referido MRPP, que apesar de maoista (e por essa  razão não democrático), era ferozmente crítico do PC e do gonçalvismo e muito activo, sendo por isso um alvo favorito desse sector e do COPCON, e que, além das já mencionadas prisões políticas, ainda viu  um dos seus dirigentes, Alexandrino de Sousa, assassinado por  militantes da UDP, um dos partidos que anos mais tarde formaram o  Bloco de Esquerda, como já tinha acontecido em 1972 com Ribeiro Santos, assassinado pela PIDE.

O 25 de Novembro permitiu pôr fim ao assalto totalitário, criando as condições para a construção de um regime livre e democrático, que aliás era a vontade da maioria da população, como se comprovou nas eleições para a Constituinte em 1975 e se confirmou nas primeiras legislativas em 1976, com percentagens muito baixas de abstenção.

Sem o 25 de Novembro, o 25 de Abril teria marcado apenas o início de um curto interregno de Liberdade, entre duas ditaduras de sinal diferente.

Embora exista um momento prévio e de importância fundamental no combate à deriva totalitária gonçalvista, a Assembleia do MFA de Tancos, no início de Setembro, que alterou a correlação de forças nas Forças Armadas e no Conselho da Revolução e permitiu o afastamento de Vasco Gonçalves e a nomeação de Pinheiro de Azevedo como  Primeiro Ministro, só com a acção e clarificação do 25 de Novembro foi  possível afastar definitivamente a ameaça totalitária e entrar no processo democrático normal.

Por outro lado, para além da divisão associada a todos os momentos históricos pela sua própria natureza, conforme acima referido, o 25 de  Novembro até foi pouco divisivo tendo em conta a conflitualidade que existia, como resultou da famosa intervenção de Melo Antunes,  geralmente considerado o mentor ideológico do Grupo dos Nove, que,  logo no dia seguinte, declarou que o PC era um partido necessário à democracia, travando assim qualquer tendência revanchista ou proibicionista, reafirmando um dos princípios da chamada democracia liberal (não gosto muito da expressão porque a considero redundante, sem Liberdade não há democracia), permitir a livre existência de todas as tendências, incluindo as que a pretendem destruir.

Quanto ao PS, embora considere que as datas históricas não têm  proprietários, porque são património colectivo e resultam sempre de um  conjunto de vários esforços, sendo neste caso determinante a acção dos  militares liderados pelo Grupo dos Nove e a acção operacional das  unidades militares a ele afectas, com destaque para os comandos (que  sofreram os únicos mortos do 25 de Novembro), a verdade é que sem o  apoio do PS e a sua acção mobilizadora da sociedade civil, dificilmente o grupo não gonçalvista das Forças Armadas teria conseguido derrotar  o sector radical.

Foi o PS, que numa luta sem tréguas contra todos os assaltos ao poder, desde a luta contra a unicidade sindical de Dezembro de 74 e Janeiro  de 75, à pressão permanente nas ruas, comunidades locais, escolas, organizações, etc, no já referido “Caso República” (lembro o slogan “República é do Povo, não é de Moscovo”!), a grande manifestação da  Fonte Luminosa, seguramente a maior de sempre em Portugal, o Terreiro do Paço em apoio a Pinheiro de Azevedo (“o povo é sereno”) e nos próprios dias dos acontecimentos do 25 de Novembro, além da importantíssima acção diplomática de Mário Soares ao nível do apoio internacional, criou as condições de estímulo, mobilização popular e  apoio a todos os níveis à acção dos militares pró-democracia, que permitiram o êxito do 25 de Novembro.

Também não faz sentido atacar sistematicamente a direita (empurrando frequentemente a direita democrática para o “saco” da extrema-direita, o que só favorece a segunda) e simultaneamente oferecer-lhe como “presente” (já aproveitado por Moedas), um momento fundamental da consolidação da Liberdade, por “falta de comparência” ou mesmo repúdio, por parte do partido que foi o principal protagonista não militar desse acontecimento.

Assim, renegar o 25 de Novembro ou tentar apagar a sua importância  histórica, além de uma traição à história do PS é um péssimo serviço  prestado ao País, sobretudo numa época de novos ataques à Liberdade,  nomeadamente de expressão, em que é mais importante do que nunca  exaltar os seus valores, o que passa pela comemoração das datas que nos permitiram recuperá-la.