A actual discussão sobre a alteração do Hino, é mais um episódio daquilo a que chamo “castração cultural” e também educativa, que se vive no Ocidente e que, acompanhado do revisionismo histórico também em voga, constituem a receita certa para um suicídio civilizacional.

A exaltação do ânimo combativo, que é diferente de “belicismo”, justifica-se plenamente, tanto por razões históricas, como actuais e futuras, e por essa razão uma grande parte dos hinos nacionais incluem o mesmo tipo de referências.

É um facto que a maior parte ou mesmo a totalidade dos países foram forjados na guerra, bem como os principais valores em que se baseia a nossa civilização, como a liberdade, a igualdade e o respeito pelos direitos humanos (Liberté, Egalité, Fraternité), foram conquistados através do combate contra os detentores do poder absoluto e frequentemente, logo a seguir, contra aqueles que pretendiam aproveitar-se da revolução para impor a sua “pureza” ideológica, tão ditatorial como a tirania anterior, com múltiplos exemplos históricos, que vão do terror de 1793-94 em França ao nosso PREC entre 28 de Setembro de 1974 e 25 de Novembro de 1975.

É indiscutível que a guerra é uma realidade terrível, pelas suas consequências devastadoras a nível individual e colectivo, e que por isso deve ser evitada e substituída por formas civilizadas de resolução de conflitos, no entanto, o facto é que ela sempre existiu e continuará a existir, e mesmo as comunidades de países que através da prática democrática interna e nas relações multilaterais, conseguiram um grau muito avançado de regulação pacífica de conflitos, (como é o caso da EU e do seus parceiros do chamado “Ocidente”, não no sentido geográfico mas politico-civilizacional) não estão imunes ao flagelo da guerra, seja por ameaça exterior, como é o caso do expansionismo russo e chinês ou o belicismo norte-coreano etc., como interno, nomeadamente o terrorismo, tanto islâmico (que também tem uma forte componente externa) como de outras origens.

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Sendo as guerras as situações mais difíceis que os países e os povos vivem, é natural que os valores necessários a combatê-las sejam exaltados na simbologia nacional.

Exaltar os valores da coragem, determinação e combatividade em sociedades “saudáveis” (e uso as aspas porque estou bem ciente dos defeitos das nossas sociedades), não tem qualquer relação com a atitude belicista de muitas ditaduras, tanto de pendor nacionalista como “internacionalista” (dito proletário!), em que a guerra é glorificada como actividade heróica e quase desejável, como factor de valorização individual e colectiva.

Nas sociedades democráticas, que prezam a paz como valor fundamental a alcançar e a manter (e as razões eleitorais têm peso junto dos decisores políticos), é necessário ter a lucidez de entender que, face às ameaças externas e internas, que existem e sempre existirão, a única forma de preservar a paz é não “baixar a guarda” e ter a capacidade militar e a determinação para enfrentar com êxito essas ameaças.

Todas as ilusões de paz eterna e sustentada no desarmamento das democracias, acabaram em banhos de sangue, como foi evidente, com o período entre as duas guerras mundiais e com o suposto “fim da história” apregoado por Fukuyama que, depois de vários avisos (leia-se atrocidades) periféricos, como aconteceu na região do Cáucaso e na Síria, a invasão da Ucrânia veio desmistificar definitivamente.

E para ter essa capacidade militar dissuasora, o Ocidente e nomeadamente a Europa Ocidental, onde o fenómeno do apaziguamento, tanto militar como cultural e educacional, tem sido mais evidente, tem que ter a vontade, o ânimo e a lucidez de a entender como uma necessidade de sobrevivência, que, na relação com ditaduras militaristas, nunca será eficazmente substituído por outros meios, podendo (e devendo) apenas ser complementada por eles.

Ou seja, é necessário que não se crie e alimente a ilusão de que é possível manter a paz sem capacidade de combate e a determinação para a usar quando se justifique, e para isso é necessário que a sociedade esteja ciente dessa realidade e que as gerações mais jovens não sejam educadas num ambiente totalmente asséptico e ilusório, castrando todas as manifestações de combatividade, desde as brincadeiras com espadas, pistolas ou espingardas dos mais jovens (aliás, substituídas pela extrema violência de jogos de vídeo, promotores não da combatividade saudável mas da violência gratuita), passando pelo fim do serviço militar obrigatório, até à censura e penalização pelas autoridades escolares do recurso à legítima defesa para travar o bullying, para citar apenas alguns exemplos.

A invasão da Ucrânia, encorajada não só pela desmilitarização acelerada da Europa, como pelas atitudes de cedência ocidental perante os avanços russos no Cáucaso, Síria, Leste da Ucrânia, Crimeia e pela fuga do Afeganistão, é a prova mais evidente de que o extremismo “pacifista” é o caminho mais directo para a guerra e do absurdo das teses que defendem que a promoção do espírito combativo é um anacronismo ultrapassado.

Aliás, a guerra na Ucrânia inverteu rapidamente o processo de desmilitarização em curso em vários países da Europa, tanto nas despesas com a defesa, como reabrindo o debate sobre o serviço militar obrigatório em países onde o mesmo tinha sido abolido.

Para recuperar uma atitude mais assertiva, a simbologia também é importante, nomeadamente a exaltação dos valores da combatividade, como nas passagens do Hino Nacional que alguns pretendem eliminar.

Outra razão pela qual a Europa tem necessidade de recuperar capacidade militar de forma urgente e séria (directamente relacionada com o espírito combativo representado pelos símbolos), é deixar de depender dos Estados Unidos, como acontece actualmente e já há muitas décadas, o que lhe retira independência, soberania e consequentemente influência e capacidade de decisão.

Antes de terminar, ocorre-me ainda perguntar o que se seguirá? Provávelmente a alteração dos Lusíadas, começando logo pelas primeiras palavras “As armas…” e censurando de seguida todas as referências aos feitos bélicos e respectivos protagonistas!

É por todas as razões expostas e porque prezo a paz, que não tenho dúvidas de que a única forma de a manter é o Ocidente democrático e nomeadamente a Europa, estar preparada para o confronto, porque só a dissuasão apoiada na capacidade militar e na determinação face às ameaças (em vez das cedências permanentes), pode impedir a sua concretização e para isso é preciso inverter o caldo cultural que diaboliza tudo o que promove a combatividade.

P.S. O autor não adere ao acordo ortográfico de 1990.

Cascais, 24/01/2023