As ligações entre políticas monetária e orçamental são historicamente importantes. À medida que os bancos centrais se desenvolveram na Europa e mais tarde nos Estados Unidos, foram tomando um papel importante no financiamento da despesa do Governo e na cobrança de impostos, para além do seu papel no financiamento da economia.
No entanto, ao longo do tempo, vários episódios de financiamento de dívida pública por bancos centrais tiveram consequências dramáticas na estabilidade macroeconómica, como a hiperinflação, sendo a Alemanha entre guerras o caso mais paradigmático. Fruto desta experiência histórica, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia garantiu que o Banco Central Europeu, estabelecido no dia 1 de janeiro de 1999, seria independente dos Estados-membros. Segundo o Tratado, o BCE ou os Bancos Centrais Nacionais estão proibidos de oferecer qualquer tipo de crédito aos Estados-membros, incluindo a compra de dívida titulada pública nos mercados primários. O Tratado proíbe também o acesso privilegiado dos Estados ou instituições públicas a entidades financeiras.
No entanto, à medida que a crise de dívida e a crise financeira de 2007-2013 se aprofundaram, tornou-se claro que a separação total entre o banco central e os Governos era impraticável devido aos vínculos entre os bancos comerciais e os Governos. Por um lado, em vários Estados-membros os Governos tiveram de resgatar bancos que tinham acumulado créditos de baixa qualidade que se tornaram incobráveis. Por outro, bancos em países altamente endividados acumularam montantes significativos de títulos soberanos nos seus balanços que os tornaram vulneráveis à crise da dívida pública. O Banco Central Europeu, que de facto se tornou o credor de último recurso para os bancos comerciais, foi obrigado em três ocasiões a considerar comprar dívida soberana nos mercados secundários para ultrapassar as limitações de um mecanismo de transmissão monetária perturbado, preservar a estabilidade financeira e garantir que os preços dos títulos de dívida soberana fossem justos para evitar que uma crise de liquidez (ausência de procura) se transformasse numa crise de solvência (incumprimento da dívida). O último programa tinha ainda o objetivo de aumentar a quantidade de moeda efetiva a circular na economia.
Gráfico 1: Títulos, incluindo Obrigações do Governo, no balanço do BCE e dos bancos centrais nacionais, milhões de euros
Em situação de emergência e na ausência de outras instituições que fossem igualmente eficazes, o BCE optou por implementar esta política monetária não convencional, conhecendo os riscos, para evitar o risco potencialmente maior de um Estado membro ou de um grande banco da área do euro da Área do Euro falirem. No entanto, à medida que a situação se normaliza, é justo perguntar se estas três finalidades para intervir no mercado de títulos soberanos não poderão ser melhor atendidas no futuro por outras instituições
Transmissão monetária e inflação
Em tempos normais, o aumento da base monetária conduz a um aumento do stock monetário (por exemplo M3) através do efeito multiplicador. Por sua vez, isso pode criar inflação, e no limite hiperinflação, se não houver um aumento da produção. O risco de inflação durante a crise financeira foi muito limitado, dado que o mecanismo de transmissão monetária era ineficaz e os bancos, com o objetivo de reforçar os seus balanços e para fazer face a riscos limitaram a concessão de crédito à economia.
A responsabilidade de assegurar que o mecanismo de transmissão monetária funciona adequadamente é claramente do banco central. Quando os fatores fora do controle o danificam, o banco central deve usar todos os instrumentos à disposição para repará-lo ou ultrapassar as suas limitações. Por conseguinte, é desejável que, no futuro, no caso de uma crise semelhante, o BCE intervenha novamente para prosseguir este objetivo. No entanto, em condições normais de financiamento, o banco central deve regressar às ferramentas convencionais de política monetária para evitar a aceleração da inflação. Neste momento não há sinais acumulação de liquidez pelos bancos e a inflação regressou a taxas compatíveis com a estabilidade de preços de acordo com o mandato do BCE. Portanto, a motivação do mecanismo de transmissão monetária defeituosa para a compra de títulos aparentemente desapareceu.
Gráfico 2: Inflação na Área do Euro
Estabilidade financeira e apoio governamental
A visão de que o BCE deve atuar como credor de último recurso para bancos comerciais resulta do facto de que a falência de grandes bancos sistémicos pode levar uma corrida aos bancos (e vice-versa), com um impacto incerto sobre a sustentabilidade de toda o sistema, sobre a capacidade de financiamento da banca e sobre o produto. É amplamente aceite que este papel é importante, mas deve ser acompanhado de regras mais rigorosas sobre a tomada de riscos pelos bancos. Esta reflexão motivou mudanças importantes na supervisão bancária na União Europeia desde 2012, através da implementação da União Bancária, que estabeleceu um Mecanismo Único de Supervisão, um Mecanismo Único de Resolução e prevê criar mais tarde um Regime Único de Seguro de Depósitos.
No entanto, as vantagens de usar sistematicamente o BCE como um backstop para a dívida pública são menos claras. Na crise de 2007-2013, o motivo da intervenção do BCE para apoiar os Estados-membros foi reforçado pelas ligações significativas entre os bancos e os Governos. Pode argumentar-se que esses vínculos tornaram impossível resgatar um sem resgatar o outro. Com efeito, os bancos foram acumulando montantes significativos de dívida pública nos seus balanços, para usar, entre outras coisas, como colateral para operações de refinanciamento junto do BCE. À medida que o valor desses títulos diminuiu e porque a Autoridade Bancária Europeia recém-criada exigiu em outubro de 2011 uma alteração na forma como os bancos registavam o valor dos títulos, os balanços dos bancos deterioraram-se acentuadamente.
Na ausência de instituições que sejam fortes e credíveis junto dos mercados nos primeiros meses da crise financeira, pode-se também aceitar que o apoio do BCE aos bancos e Estados era necessário e, de facto, desejável. No entanto, é menos claro que o BCE deva assumir esse papel de forma permanente no longo prazo.
Riscos do financiamento monetário da dívida pública
Um dos principais desenvolvimentos na atividade dos bancos centrais foi a separação entre política monetária e política fiscal. Transformar o BCE em credor de último recurso para os Estados seria um passo atrás no tempo por três motivos: primeiro, pelo risco de um aumento excessivo de inflação, segundo pelo risco de perdas para os bancos centrais que podem obrigar a financiamento por parte dos contribuintes e finalmente pelo risco moral, isto é, o risco de que a compra de dívida pública e a manutenção de taxas baixas incentivem gastos adicionais.
O risco moral existe sempre que há um backstop para perdas. Isso significa que, para existir um credor de último recurso dos Estados-membros, é necessário que outra instituição limite a tomada de riscos pelos Estados. O BCE, que tem recursos ilimitados para financiar a dívida do governo através da impressão de dinheiro, não deve ser o backstop permanente dos Estados.
Reforma institucional da Área do Euro
Limitar a exposição dos Estados ao sector financeiro e vice-versa poderia ser um passo importante para reforçar a economia europeia já que reduziria a necessidade de o Banco Central intervir no mercado secundário de títulos de dívida soberana. Por enquanto, não existem planos para limitar a quantidade de títulos de dívida soberana detidos pelos bancos. No entanto, os conflitos de interesse foram minimizados pela União Bancária, que assumiu a supervisão e resolução de bancos sistemicamente importantes, e pela Direção Geral da Competição da Comissão Europeia, que exige remédios em caso de auxílio estatal ao setor financeiro. Ainda assim, a União Bancária permanece incompleta sem um Fundo de Resolução comum nem um regime único de Garantia de Depósitos.
Agora que a urgência da crise passou é importante refletir sobre a criação de uma instituição Europeia para apoiar os Estados em dificuldades (ilíquidos, mas não insolventes) de forma permanente. Embora os riscos acima limitem o papel do BCE como credor de último recurso para os Estados, o Mecanismo Europeu de Estabilidade, que atualmente pode endividar-se nos mercados financeiros para financiar Estados-Membros que foram apoiados por um programa de assistência financeira, seria um forte candidato a esse papel. No entanto, seria provavelmente necessária uma reforma do MEE para o transformar num verdadeiro Fundo Monetário Europeu. Os desafios colocados pelo Brexit, pela nova administração Trump e pelas crises financeira e de dívida demonstraram a capacidade da Europa de manter o seu espírito reformista. Nos últimos doze meses só a Comissão Europeia publicou vários documentos sobre a reforma institucional da União Europeia. O PPE também apresentou dois textos com a sua visão para o futuro. É importante aproveitar esta oportunidade para avançar efetivamente no sentido de uma coordenação e gestão das políticas económicas e financeiras da UE mais resiliente aos choques.
Este artigo foi originalmente publicado numa versão mais longa pelo Instituto Francisco Sá Carneiro.