Por muito que se pense estratégia ou que se pense como será o depois, em tempo de guerra os princípios de formulação e implementação estratégica são substancialmente diferentes dos princípios em tempo de paz. Se estamos em guerra contra um vírus, por um lado, estamos também em guerra contra uma recessão sem precedentes em termos económicos, com consequências sociais imprevisíveis, por outro.

Os dois objetivos são, numa primeira análise, contraditórios porquanto a sociedade, enquanto tal, está coartada, está inibida, está socialmente afastada e o modelo de desenvolvimento económico que conhecemos faz-se juntando-nos, socializando em bares, viajando em grupos, aprendendo em turmas, trabalhando em empresas, todos em conjunto. Mais, o modelo global pelo qual optámos, e bem, abrindo fronteiras e deixando que os territórios fossem multiculturais e as cadeias de abastecimento transversais aos vários continentes, sofreu com isto um rudíssimo golpe.

Temos, por isso, vários desafios em simultâneo e eles parecem ser claros:

1 Temos de ter linhas de comando únicas e poderes centralizados para podermos superar a crise, tanto em termos de saúde como em termos económicos. Isso tem repercussões e responsabilidades acrescidas para quem assume os lugares da frente. E, neste caso ao nível do país, e ao contrário do que se possa pensar, António Costa é o timoneiro. O comando deve ser único, deve ter intervenções curtas, transmitindo segurança, deve basear-se em factos e, tudo o que dele saia, assumindo as rédeas do poder em estado de guerra, deve ser cumprido. Isto não é, não pode ser nunca interpretado de outra forma, uma inibição à democracia. É, antes de mais, assumir que na democracia que temos há um primeiro ministro eleito, com o voto do povo, um chefe do governo e que deve governar e traçar o rumo para o país. E todos devemos interiorizar que em tempos de exceção haverá seguramente medidas de exceção. Cumpre-nos acatá-las. Podemos solicitar mais, pedir isto ou aquilo mas, antes de tudo, alinhar esforços com quem governa.

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E, para isso, a primeira questão deverá ser, desde logo, fundada no esquecimento das diferenças de pensamento e ideologia – e isso faz também parte da democracia –, aceitando que o nosso primeiro-ministro (que obviamente deverá escolher quem o rodeia para ajudar à decisão) tem um papel de responsabilidade máxima, deve ter, facto que em nenhum outro momento ascenderia a este nível. E isso foi-lhe dado, justamente, pela democracia. É a ele que compete que não tenhamos aproximações ad-hoc e descoordenadas. Quando há extrema escassez de recursos só quem tem uma visão de topo pode assumir este papel.

Dito isto, várias vozes de comando, dispersão de decisões estratégicas por vários ministros ou secretários de estado ou por diversas equipas não são a melhor solução. Não são nem nunca foram em estados de guerra. Ensina qualquer compêndio de logística ou qualquer livro de princípios de estratégia que venham da guerra.

Nas empresas e organizações sucede o mesmo. Deve haver apenas um e só um timoneiro. E esse timoneiro deve segurar o leme e assegurar-se que o casco, a mastreação e o velame devem estar em condições mínimas para ser operados. A quilha e o patilhão devem estar aceitáveis e o leme seguro. Só assim se garante que os esforços são coordenados e tendentes a salvar o país. Não estamos em momento de divergências. Estamos em momento de salvação.

2 Temos um desafio colossal ao nível de saúde pública. Longe do pico de infetados (e também de mortes) estamos a procurar achatar a curva de acesso aos serviços de saúde, e bem, e a procurar evitar a sua saturação. E quando digo longe do pico estamos mesmo longe do pico. Desconheço o que será a evolução futura mas estamos em fase exponencial e com um parâmetro de evolução diário que tem sido instável. Não importam agora os considerandos sobre os porquês da instabilidade do parâmetro de progressão (pessoas testadas, pessoas que recorrem ao SNS, efeitos do lockdown parcial, entre vários outros) mas, antes, saber o que possa ser uma evolução mais consentânea com a não saturação do SNS e, por outro lado, com a saturação mais rápida. Num cenário pessimista para o SNS, o pico viria entre o dia 17 de Abril e o final de Abril e num cenário mais otimista o pico viria entre o final do mês de Abril e o dia 12 de Maio. Porém, em ambos os cenários se atinge a saturação do SNS, i.e., ultrapassa-se a capacidade instalada. De uma forma mais acentuada ou menos acentuada.

Isto dito, depressa se conclui que ultrapassar a capacidade instalada para tratar doentes/dia torna o processo, para quem está na linha da frente, absolutamente calamitoso: terá de haver escolhas entre quem se deixa ou não morrer. Facto que ocorre em Itália e vai ocorrer em Espanha e, analisando friamente as coisas, cá também. Sem alarmismos, temos de estar preparados para essa realidade e a verdade é que as pessoas que estão na linha da frente terão um duríssimo trabalho entre mãos e precisam, agora, já, imediatamente, do apoio de todos nós. Estas pessoas, verdadeiros heróis, são poucas e os recursos são escassos. Portanto, procurem ajudar no que puderem. E pedidos de doações, de equipamentos, de material, de pessoas e de ajuda, enfim, do que seja, deveriam estar a ser centralizados – com informação e não com a desinformação que corre nas redes sociais e que é imprudente e infantil – apenas através de um canal. Opinião que dou a quem decide: comuniquem – e esta é uma das comunicações que deve ser feira pelo primeiro ministro – e deem a conhecer este canal intensamente para que se sobreponha ao total desnorte que se vê nas redes sociais.

3 Finalmente, mas não menos despiciente, vem a parte económica. Todos desconhecemos quanto vai demorar o período de recolha e afastamento social. Se bem que com os dados que estão acima possamos adivinhar qualquer coisa. É um facto, não obstante, que temos de repor o funcionamento da economia de que forma seja. O drawdown em termos de PIB não será tão suave quanto o que tenho ouvido a várias entidades e isso agora também pouco importa. Terão as suas previsões. Porém, basta olhar para aquilo de que se compõe o PIB e fazer repercutir na fórmula o tempo de paragem e facilmente chegamos aos 10%, para não dizer muito mais (neste particular estou totalmente em sintonia com o António Pires de Lima).

Ora, se assim é, a questão é apresentar soluções para a retoma da economia. Uma boa parte da retoma, e peço desculpa aos mais céticos em relação a isto, terá de ser conseguida, neste primeiro momento, e o momento é já, por via digital. Falou-se tanto, quase ad nauseam, em transformação digital que, bom, chegou a hora de pormos muito do que era ainda prospect em prática. Parece que andámos a brincar com o futuro e o futuro disse: já cá estou!

Nestas coisas o online, via e-commerce e não só, a tangibilização das redes e cadeias de abastecimento – que nunca foram tão críticas – os transportes, a restauração, a banca (e as fintech), o retalho, alimentar e não alimentar, vão ter um papel fulcral na transformação e criação de novos paradigmas. O ensino, o trabalho em quase todo o tipo de serviços, as experiências de diversão, e tantos outros, terão de se adaptar ao online e passar também a novos paradigmas. A arte de reinventar o negócio em afastamento social será absolutamente crítica. É evidente que a aviação não se vai adaptar toda ao transporte de tangíveis e a hotelaria não vai passar a arrendar quartos ao mês continuando a ser rentável (e porque não, podendo ser uma fonte de rendimento imediata e servindo quem anda à procura de uma solução de habitação). Há, ainda assim, muito caminho a percorrer na reinvenção, numa primeira instância, de variadíssimos modelos de negócio.

Agora, é ao mercado que compete também, e isto é muitíssimo sério, aceitar a mudança de paradigma. A não aceitação pelo mercado de novos paradigmas pode ditar o fim de muitos negócios. E com o fim de muitos negócios pode vir uma recessão ainda maior. Gigantescamente maior. Se os clientes não continuarem a ser procura debaixo de novos paradigmas podem efetivamente ousar pensar, de forma egoística, em como vão sobreviver com as suas taxas de poupança baixíssimas ao período que se avizinha. Mas essa sobrevivência, sem mais, não vai acontecer. Quando derem por isso terão morto a sua própria economia e, pior que tudo, terão dado cabo de milhões de postos de trabalho – inclusive dos seus – e de anos e anos de progresso e wellbeing. Está, pois, do lado dos negócios o reinventarem-se. Mas está também nas mãos dos clientes, mais que nunca, acederem, de braços abertos, à sua reinvenção.

Por cada não aceitação de novos paradigmas por parte do mercado haverá consequências drásticas imediatas e mais à frente. É aqui que se vai ver se o homem ocidental é efetivamente capaz de se salvar e salvar a vida que conhece ou se vai querer remeter-se durante muitos e muitos anos a níveis de pobreza sem quaisquer precedentes.

PS. Há cerca de um mês e meio atrás organizei uma Masterclass intitulada Bem-Vindos ao Inferno 4.0. E nela usei muitos exemplos sobre o Corona Vírus sem saber o quão extenso iria ser o seu impacto. Para todos os efeitos, o título mantém-se. Mal sabia eu que estava, envergonhadamente, a prever o futuro.