À esquerda e à direita, amigos à beira das lágrimas confessaram-se profundamente afetados pela recente morte de Silvio Berlusconi. Estranhando a comoção por um homem tão de outro tempo, procurei oferecer consolo apontando a uns o seu pendor machista e a outros o seu desprezo pela moral convencional, num país que chegou a ser um bastião da democracia-cristã e é hoje indistinguível do caos berlusconiano.

“É verdade, mas ele tinha muita graça”, ouvi em resposta. Percebo o argumento, mas não comungo. Hoje é difícil resistir a um político sempre descrito com recurso à expressão bunga bunga. Berlusconi foi provavelmente o único político de quem toda a gente se riu e ainda é omnipresente nas notícias e clipes virais.”

Pelo meio, Berlusconi foi o primeiro a provar que era possível um político ser conhecido pela baixa polémica e mesmo assim governar um grande país. Com ele, o comic relief passou a ser o centro do debate público e nunca mais um homem apenas cinzento pôde ambicionar a conquista popular. Berlusconi mostrou que havia um espaço para uma política de entretenimento, num momento em que os eleitores tinham subitamente perdido a ilusão da política séria. Mais do que populista, que é um rótulo preguiçoso, o interesse em si foi cativado pelo infinito ciclo de escândalo público e ausência de arrependimento, sem qualquer pretensão de derrotar um sistema político e económico que o tinha tornado multimilionário e que também ajudou a sustentar.

Tendo começado como um empresário do imobiliário, Berlusconi criou uma nova forma de televisão em Itália, expandiu-se para Espanha e para a Alemanha, geriu jornais sem grande interesse ou sucesso e comprou um clube de futebol que chegou a ser o maior da Europa. Abandonada a construção civil, o seu negócio foi sempre o entretenimento e o entretenimento foi sempre a sua política.

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Foram as circunstâncias do país a impedir que Berlusconi fosse um Rupert Murdoch continental ou um Logan Roy de vícios públicos, trocando a possibilidade de influenciar governos pela participação direta na política nacional – um novo ramo para o negócio do entretenimento. O seu primeiro partido, o Força Itália, surge no início da década de 1990 como um projeto pessoal e transforma-se na resposta mais evidente à Operação Mãos Limpas, que expôs a gigantesca corrupção da política italiana e dinamitou o sistema partidário que vigorava desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Noutro país e noutro tempo, dificilmente a amálgama ideológica de um empresário criado no sistema poderia ter surgido como resposta plausível a um escândalo moral do regime. Para um eleitorado naturalmente conservador, escolher Berlusconi como alternativa à corrupção foi mais uma desistência do que um protesto, tendo custado uma estagnação económica sem equivalente na Europa e três décadas de caos político, com governos sempre temporários e de configurações variadas.

Berlusconi não se apresentou como mais antissistema do que os seus adversários, nem fingiu ser o representante do povo contra a elite. Pelo contrário, como se percebe dos relatos da época, ali estava uma personificação do superego italiano, um milionário publicamente viril e que fazia rir, indisponível para transigir com os comunistas e preparado para depender da direita mais radical, incluindo movimentos neofascistas e secessionistas, até então proscrita da governação democrática. Se os políticos tradicionais não eram serious people, para que servia um cordão sanitário?

A aliança de direitas será provavelmente o seu legado político mais duradouro, assegurando que Itália nunca mais foi governável e afastando-o de outras figuras com que tem sido erradamente comparado. Ao contrário de Donald Trump, Berlusconi nunca representou a direita mais extrema do seu país; e, ao contrário de Boris Johnson, Berlusconi atravessou o Rubicão ao permitir que os seus governos dependessem do apoio extremista.

Em muitos aspetos, o final de vida de Berlusconi mostrou que toda a corrupção moral nem sequer garantiu sucesso. O AC Milan, responsável por uma certa visão do orgulho nacional italiano, foi vendido em 2017 a um grupo chinês, com Berlusconi a reconhecer que o futebol moderno exigia investimentos que uma família não poderia assegurar por si só. O seu controlo de canais de televisão foi diluído e a própria televisão perdeu relevância na capacidade para moldar o entretenimento e o debate público.

Na política, o seu legado é sobretudo um aviso. Hoje é o seu partido o parceiro mais fraco da grande coligação da direita, servindo sobretudo para legitimar um governo encabeçado pelos movimentos extremistas que inicialmente o apoiaram. Para um homem que foi primeiro-ministro, deputado, senador e eurodeputado, não é claro se Berlusconi gostava mesmo da política ou se encontrou aí uma forma de participar diretamente no entretenimento.

Em qualquer caso, o que fica é uma lição de como o poder não consegue substituir as ideias. Vários governos, uma vida devassa, incontáveis casos judiciais e, no final de uma vida intensa, Itália não é um país melhor do que era.

Que os italianos tenham tropeçado numa oportunidade para fazer tudo de novo e tenham optado por seguir a graça de Berlusconi é inteiramente culpa própria, mas é também a história de uma tragédia coletiva que conseguimos perceber. Numa variação de Macbeth, a vida de Silvio Berlusconi foi a história de alguém que não quis ser sério, cheia de som e fúria e vazia de significado. Mas, claro, teve graça.