No último discurso sobre Estado da União antes das eleições europeias de 2024, a Comissão Europeia apareceu diferente. No plenário de Estrasburgo, a presidente von der Leyen pôs a competitividade económica em primeiro lugar – o tipo de missão europeia agora tão séria que requeria a nomeação de Mario Draghi como responsável por profundas reflexões –, agradeceu aos agricultores europeus e prometeu investigações aos auxílios de estado chineses no setor automóvel.

Com este discurso, a União Europeia passou a estar em campanha eleitoral. Começando pela própria presidente, que preferiu não fazer um balanço do seu mandato e antes deixou um caderno de encargos para o futuro, com obras e reformas por concluir ou principiar, até aos eurodeputados, que apresentaram os temas em debate durante o próximo ano: as coligações com a direita mais radical no Parlamento Europeu, a relação económica com a China e o destino das políticas ambientais europeias.

Ao optar por aderir aos temas mais populares da sua direita, von der Leyen apresentou uma candidatura à renovação do mandato em termos contraditórios aos da sua presidência centrista e abrangente que, frequentemente, foi até mais litigiosa no relacionamento com o Partido Popular Europeu do que com a sua esquerda. Essa mudança veio com um discurso mais doméstico, destinado ao consumo interno europeu, mas torna-a mais plausível em ano eleitoral. Para além dos eleitores e dos eurodeputados, um segundo mandato de von der Leyen na Comissão Europeia dependeria ainda do apoio do Conselho Europeu, onde têm assento os chefes de Estado e de Governo nacionais, incluindo húngaros e polacos que não são seus aliados.

A possível continuidade de von der Leyen é também um tema indispensável na campanha para as europeias, relevante já hoje porque a própria não deverá responsabilizar-se pelo seu programa político apresentando-se a eleições. Pelas primeiras sondagens, o próximo Parlamento Europeu arrisca-se a uma composição fragmentada, em que a coligação do centro (entre sociais-democratas, liberais e populares) perde terreno para a força dos conservadores e da direita alternativa, que lidera em França, na Itália e na Polónia, para além de ocupar um inédito segundo lugar na Alemanha. No grupo popular, muitos defendem ser tempo de romper com o centro e assumir um bloco de direita no Parlamento – e essa será uma polémica para a campanha eleitoral.

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Uma maioria desse tipo seria mais difícil de gerir para von der Leyen, que desde sempre procurou alinhar-se com as forças do progresso e se tornou rapidamente popular em Bruxelas ao apresentar-se como a presidente que vinha da direita mas não pretendia ficar por aí. A flexibilidade que demonstrou ontem não terá deixado de ser notada, mas não se afigura fácil passar os próximos cinco anos em contradição com os cinco anteriores.

O legado do primeiro mandato de von der Leyen é misto. Chamaram-lhe já a “presidente acidental”, eleita antes de conseguir um nome de peso na Europa e presidindo a enormes crises, da pandemia à guerra na Ucrânia, que aprofundaram a União Europeia sem que a própria o tivesse planeado ou tivesse sido a figura decisiva das grandes novidades. Foi no seu mandato que se avançou na compra conjunta de vacinas (sujeita ainda a processos judiciais e dúvidas de gestão), que nasceu a “bazuca” europeia e a emissão de dívida conjunta para a financiar, e em que se percebeu que a ameaça russa, a competição chinesa e a falta de cooperação americana obrigariam a União Europeia a encontrar uma qualquer forma autonomia no mundo. Ao mesmo tempo, é possível e até provável que tudo isso tivesse acontecido com outra presidente da Comissão Europeia, já que o contexto era demasiado grave para se mitigar com soluções decididas apenas por Bruxelas.

Neste caso, o ceticismo é aconselhável. Von der Leyen, com defeitos que ocupariam mais do que este espaço, tem pelo menos o mérito de ter superado o ambiente de suspeita que se criou aquando da sua opaca nomeação. Há freios e contrapesos suficientes para garantir que a Comissão Europeia não decide nem legisla contra a vontade dos Estados-Membros, que continuam a ser o verdadeiro centro do poder europeu. A sua visão terrena e interna, que conhecemos no discurso de ontem, foi complementada com a defesa de uma União Europeia que pense “grande” e, consequentemente, que recupere o vigor com um alargamento a leste, para os Balcãs e não só para a Ucrânia. Resolver a economia, rever o ambiente e realargar a União: aí está uma presidente da Comissão Europeia que é fácil de apoiar.