Antigamente, os exploradores do desconhecido e os conquistadores do inútil eram heróis ou aparentados. De Magalhães a Armstrong, de Colombo a Scott, de Cook a Hillary, as proezas desses raros espécimes mereciam celebrações e os seus fracassos inspiravam lamentos. Até os anónimos que não procuravam nada de partilhável e não encontraram nada excepto a morte, como Everett Ruess, Michael Rockefeller e, ainda há 30 anos, Chris McCandless, viram-se mitificados apenas porque arriscaram perder-se e contribuir um bocadinho para o mistério que torna a nossa existência interessante. Todos beneficiavam de privilégios. Nenhum foi depreciado à conta disso, pelo menos à escala global e com um milésimo do fel despejado sobre as vítimas do Titan.
As “redes sociais” ajudam. A cotação do ódio, que está barato, também. Milhões de indivíduos decidiram condenar a cobertura noticiosa e as buscas pelos cinco “bilionários” que se enfiaram numa traquitana – desenvolvida sem apoio de “tipos brancos de 50 anos”, que “não são inspiradores” – e desapareceram nas profundezas geladas do Atlântico. Capricho de ricos, disse a sentença da opinião pública, que aproveitou para fingir virtude e preocupação com os refugiados que desaguam no Mediterrâneo e onde calha. Não importa que ambas as realidades não sejam mutualmente exclusivas. Não importa que os virtuosos não costumem acolher desgraçados em casa. Não importa que a culpa pela miséria do Terceiro Mundo não caiba aos capitalistas que viajavam no “submersível” mas aos regimes que os anti-capitalistas veneram. Não importa que o relevo concedido pelos “media” à “elite” seja igualzinho ao que, para efeitos de sentimentalismo e audiências, se concede a crianças sumidas, jovens encurralados e russos pobres e presos noutro submarino. Importa que qualquer pretexto é um óptimo pretexto para desfilar compaixão e berrar ressentimento.
O ressentimento é o verdadeiro motor da história da esquerda, a esquerda de militância e a esquerda de coração. Se o sr. Saramago, exemplar típico da seita, tinha por hábito velho manifestar-se contra os avanços na pesquisa espacial, incluindo o programa Apolo e os “rovers” em Marte, não custava imaginar o que inúmeros saramaguinhos fariam com os sujeitos que pagaram 250 mil dólares a troco de uma viagem breve e um fluxo reforçado de adrenalina: exactamente o que fizeram. Primeiro criticaram os gastos dos sujeitos. Depois criticaram a despesa das tentativas de resgate. A seguir fabricaram graçolas com a tragédia previsível e, entretanto, confirmada. Por fim, com a alma em repouso, jantaram bem e beberam melhor, sem oferecer uma simples garfada aos 10% da população mundial que não têm o que comer. Os virtuosos já cumpriram a sua missão, que passa pela retórica grandiosa e não, até porque estavam à mesa, por sujar as mãos com casos autênticos. Eles, convém relembrar, não praticam a “caridadezinha”.
É injusto acusar a esquerda de só desumanizar os ricos de modo a que, na boa tradição dos totalitarismos, se defina um inimigo exterminável: a esquerda desumaniza igualmente os miseráveis, que reduz a uma abstracção instrumental e confortável. Os infortúnios dos ricos constituem um justo castigo. Os infortúnios dos miseráveis fornecem o que nas cabeças dessa gente se confunde com um excelente “argumento” para legitimar o fanatismo. E para odiar, embora essa gente prefira o verbo “lutar”. O célebre leite da ternura não corre nas artérias dos virtuosos, mais próximos da psicopatia que do seu, digamos, semelhante.
Os virtuosos falam em “prioridades”. O ideal talvez fosse estabelecer uma hierarquia de abertura de telejornais e urgência em salvamentos de acordo com a declaração de rendimentos e os escalões de IRS. Em situação de desastres simultâneos, os “meios” disponíveis começariam por auxiliar os imigrantes subsarianos sem rendimentos nem IRS. Prosseguiriam no socorro aos usufrutuários do rendimento mínimo. Se sobrasse tempo, lá se salvariam por desfastio os membros da classe média-alta, que em Portugal são os que ganham 2 mil euros. Milionários, somente os que o são à custa de negociatas com o PS. E bilionários, se tivéssemos algum, não teriam salvação possível, assim na Terra como no Céu.
A propósito de bilionários, e dado que estamos em maré (desculpem) de humor negro, era engraçado comparar as fortunas dos vilões do Titan com as de tantos semideuses da esquerda conscienciosa, os abundantes tiranos latinos, asiáticos e africanos que nunca deram um dinheirão para descer ao fundo do mar. Em geral, os tiranos ocupam-se à superfície, a roubar e a matar de bala ou fome os respectivos povos, cujos sobreviventes partem em fugas desesperadas rumo ao capitalismo selvagem e egoísta. A natureza humana é insondável, mesmo com sondas moderníssimas.