Quando alguém ao meu lado falou de uma largada de bisontes numa propriedade ali para Castelo Branco, promovida pela Rewilding Portugal, do alto da minha falta de informação disse que não deviam ser bisontes, deviam ser exemplares da experiência de recriar auroques com base em retroselecção da espécie.

Eu estava redondamente enganado, eram mesmo bisontes.

Tenho bastante simpatia pelas ideias que estão na base do movimento rewilding (eu sei que chamar-lhe renaturalização rende menos), em especial a ideia de que não há recursos para repor a gestão da paisagem rural europeia nos níveis de intensidade da primeira metade do século XX, portanto é mais inteligente apoiar a renaturalização que está a ocorrer, por causa da diminuição de intensidade de gestão, tirando partido dela.

Este processo de renaturalização tem implicações várias, como a diminuição das espécies mais associadas à clareira e aos espaços agrícolas e pastagens – daí as fortíssimas diminuições de populações de aves de espécies comuns, por exemplo – e a recuperação das espécies mais ligadas às matas, como o urso, o lobo, a marta, vários cervídeos e muitas outras menos visíveis.

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Para já não falar da vegetação natural, que está a recuperar com uma escala e velocidade como não se terá verificado desde a última glaciação (em termos globais europeus, pontualmente, aqui e ali, os processos que estão a ocorrer podem seguir orientações completamente diferentes).

Faz sentido que olhemos para estes processos e ajudemos a biodiversidade a retomar um lugar maior que o que teve nos últimos séculos, incluindo com algumas intervenções que podem aumentar a velocidade e dar maior continuidade e consistência a estes processos, como a retirada de barreiras artificiais de alguns rios, que lá continuam, apesar de obsoletas (naturalmente isto tem um potencial de conflito com a conservação do património cultural e da memória colectiva, mas é uma questão gerível).

Para mim, o caldo entorna-se quando aparecem os radicais das boas ideias, a querer formatar mundos complexos a partir de ideias simples (qualquer semelhança com a engenharia social frequente em alguns programas políticos não é, evidentemente, coincidência).

Um dos problemas desta reposição dos sistemas naturais são as peças que desapareceram sem retorno, em especial espécies selvagens de grandes herbívoros e respectivos predadores.

Os grandes herbívoros das matas, como os veados, foram-se aguentando, melhor ou pior, e por isso basta dar-lhes espaço para que aumentem.

Mas os grandes herbívoros de clareira, como os antepassados das vacas e dos cavalos, desapareceram com a ocupação que fizemos dos seus habitats naturais, processo no qual conduzimos a evolução dessas espécies de acordo com os nossos interesses na sua domesticação, pelo que não existem fontes de animais selvagens para recolonização (renaturalização, rewilding, o que se lhe queira chamar).

Ou seja, a renaturalização que está a ocorrer é a que resulta de um ponto de partida amputado de algumas peças, dando origem a novos sistemas naturais cuja evolução futura desconhecemos por completo, mas da qual já conhecemos alguns aspectos que nos desagradam, como um padrão de fogo socialmente inaceitável, para muitos.

Os radicais das boas ideias, que têm sempre soluções simples para problemas complexos (ver, por exemplo, a posição do Partido Comunista sobre a guerra da Ucrânia, defendendo que o objectivo é a paz e a paz não se alcança com armas, portanto a solução é sentar Putin numa mesa de negociação, quer ele queira, quer não queira, e negociar a paz), resolveram começar a inventar soluções contra-natura, como o projecto Tauros (um conjunto de cruzamento de raças de vacas que se consideram mais próximas do auroque, de modo a obter, no futuro, o renascimento dos auroques, extintos há séculos) e, para meu espanto, a introdução de espécies exóticas que alguém decidiu que são funcionalmente equivalentes, do ponto de vista ecológico, às que se extinguiram.

Pessoalmente não tenho informação para ter certezas sobre isto, excepto a certeza de que usar dinheiro de conservação da natureza em soluções Frankenstein é um risco cujos benefícios me parecem muito discutíveis.

Espanta-me a tranquilidade com que esta introdução de espécies exóticas numa espécie de jardim zoológico de grande dimensão é apresentada como uma acção de conservação da natureza, de rewilding, sem discussão prévia e, aparentemente, com discussão posterior quase inexistente.

E, no entanto, talvez fosse bom trocar umas ideias sobre o assunto, como diria o Mário de Carvalho.