Ver um bando de jovens selvagens assaltar ferozmente e com requintes de sadismo um indefeso imigrante nepalês numa rua de Olhão, era seguramente uma improbabilidade para a maioria dos portugueses. Mas aconteceu à vista de todos. Num país de brandos costumes, e com reputação de afabilidade para com os estrangeiros, descobrir que o ódio racista com laivos de instinto assassino existe, afinal, dentro de nós, é uma experiência dolorosa. Salvou-se num primeiro momento a prestação do Ministro da Administração Interna, que, chamando o nome às coisas, declarou esta situação absolutamente indesculpável. Valeu-nos logo a seguir a força da mensagem do Presidente da República. A honra nacional foi salva, somos, e queremos continuar a ser, uma sociedade aberta, tolerante e respeitosa dos outros, pelo que o papel do poder público não pode dar lugar a dúvidas. Esperemos que as palavras tenham aplicação prática e produzam efeitos didácticos.

Mas Portugal é realmente, ou não, um país de brandos costumes? Olhando a nossa História com alguma profundidade, não é óbvio concluir que o ADN português possua mesmo essa característica. Mas o que é certo é que, pelo menos durante grande parte do Séc. XX, nos habituámos a viver mal com os exageros comportamentais que incluíssem agressividade. Os brandos costumes fizeram, com certeza, parte de uma imposição cultural de aceitação das nossas limitações de fortuna e de espaço. Mas entrados no Séc. XXI, eis que os autolimites sociais deixam de ser normativos e o fogo do veneno abre um caminho de violência. Alteração que é reflexo, igualmente, da crispação que advém de problemas sociais e económicos não resolvidos e, aparentemente, sem qualquer perspectiva de solução. O horizonte não é, de facto, de bom augúrio.

Porém, esta é só uma parte da história. A imigração é uma dimensão maior do momento que a Europa atravessa e o papel do Governo português não pode continuar a ser o do piloto fantasma. Se nos limitarmos a presumir que o incidente de Olhão se tratou apenas de um problema de ordem pública que a força do Estado pode facilmente resolver, não compreendemos o que está a acontecer. Porque o que se passou em Olhão é o resultado, dramático é certo, de o Estado se ter demitido da regulação dos fluxos imigratórios, acabando por se tornar cúmplice silencioso de bandidos como os que em Olhão assaltam imigrantes. Imigrantes que, na ausência de sinais claros por parte das autoridades, vieram para Portugal para serem explorados e depois sovados e roubados.

A punição exemplar dos bandidos não dispensa a urgência de encarar o problema da imigração como um desafio existencial para a sociedade. A questão não é se nós, os que aqui vivemos agora, somos contra a imigração. O essencial é que a fábrica da sociedade onde nos movemos – e que iremos deixar aos nossos filhos e netos – tenha condições humanas de funcionamento. Sabemos pela História o que um significativo afluxo de migrantes, mesmo que em legítima procura de sobrevivência, pode fazer para soçobrar uma sociedade, em especial se ela for relativamente pequena e pobre como a nossa. As preocupações de teor humanista não justificam a demissão e o caminho do suicídio colectivo. Por isso, ou a imigração é gerida, ou arriscamos a descaracterização do nosso modelo de vida cultural, abrindo espaço para a libertação de inusitadas violências à procura de putativos referenciais perdidos.

Este não é um problema português, é marcadamente hoje um problema europeu. Necessário ter bem presente que os populistas que animam a violência como forma natural de expressão, são só o sintoma, são o produto da exploração das oportunidades. Não são a causa.

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