Enfim…

Fico sempre espantado, envergonhado e triste quando encontro empresas amarradas a ditaduras plásticas de felicidade com mantras de “people first!” e “corporate happiness” e depois não têm um contabilista para apoiar as pessoas nas suas finanças pessoais, especialmente quando 50% ou mais dos quadros estão altamente endividados e sofrem de iliteracia financeira, ou… não tem um psiquiatra uma vez por semana, que seja, para as ajudar em problemas mentais e de ansiedade, ou.. não lhes permitem tirar um dia ou uma manhã por mês para respirar ou tratar de assuntos pessoais realmente importantes, ou… dizem “vais tirar a tarde” quando alguém sai às 18 horas para ir ter com a sua família incrível, ou.. fazem pressões parvas com as licenças de maternidade ou paternidade, ou.. marcam reuniões às 18 horas e enviam emails à noite e ao domingo a exigir resposta, ou.. pedem missões impossíveis a equipas subdimensionadas quando comparamos com Holandas e Dinamarcas, ou… quando tratam pessoas experientes, inteligentes como se fossem crianças de cinco anos, microgerindo-as, ou… contratam “amigos” sem experiência para cargos de direcção, ou.. têm 90% de homens em cargos de direcção, ou… pagam salários do terceiro mundo, ou… despedem quadros com cinco, 10 ou 20 anos de casa sem dar tempo para que encontrem outra posição digna da sua experiência e do seu potencial, ou… não dão formação premium com regularidade por achar que “essas coisas” custam muito dinheiro, ou… não têm um sistema a sério de gestão de talento e pessoas competentes para o animar ou… enfim, avancemos para o tema do artigo antes que me pare a digestão.

Nem tudo é burnout

Quando algo contextual se torna muito referenciado, tudo parece resultar como sua consequência. Percebemos isso atualmente com a pandemia – todos os atrasos, faltas e falhas são culpa da Covid. É também o caso do bullying – qualquer piada ou brincadeira não consensual se torna caso de bullying quando antes eram apenas crianças a ser crianças. E é o caso do burnout – qualquer má disposição, insatisfação ou incapacidade de lidar com uma determinada situação é encarada como caso extremo de burnout.

Starobinski afirmou que “antes de serem reconhecidos como estados anormais, certas doenças são apenas uma turbulência do curso habitual da vida, da qual ninguém pensa em separá-las. (…) essas doenças só existem como doenças pela atenção que recebem.” Quando damos nome às coisas, elas tornam-se realidade e quanto mais divulgamos o problema, mais ele se torna conhecido. Faz lembrar a velha história do homem no seu leito de morte que dizia “tive tantos problemas.. a maior parte deles nunca chegou a acontecer…”

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Efetivamente, é esse o denominador comum em todos os casos acima mencionados: foi dado um nome “científico” a situações que são do foro natural. Teorias da conspiração à parte, o vírus que nos assola é uma consequência negativa de um ato da natureza; a maioria das brincadeiras menos agradáveis entre crianças são a sua mais pura expressão de inocência e conhecem-se desde sempre; o agora chamado burnout também sempre foi uma inadaptação do ser humano com a sua condição ou estilo de vida e existe desde os primórdios do ser humano (ainda que, no início, não fossemos tão exigentes com essa mesma condição).

Esta abordagem não é taxativa nem visa menosprezar as consequências destes acontecimentos que, quando efetivamente são diagnosticados, são extremamente graves e carecem de tratamento profissional. É, pelo contrário, pôr as coisas em perspetiva e perceber qual a fronteira entre querer ter a “doença da moda” por uma questão de caminho mais fácil e inclusão social e porque torna mais fácil a desresponsabilização de compromissos e o confronto com a realidade de que, se calhar, não estamos no sítio certo.

O tão aclamado “stress” não é mais do que a incapacidade do ser humano de gerir todas as responsabilidades que aceita e lhe são incutidas, mais ou menos diretamente. Quanto mais nos afastamos do estado natural, mais nos assolam as artificialidades do quotidiano. Conseguimos identificar “stress” num estado puro do ser humano, aquele que estudamos quando remontamos aos nossos primórdios? Bom, certamente que sim. Com toda a certeza que, quando faltava alimento, quando as condições atmosféricas arrasavam o cultivo ou quando existiam disputas territoriais, isso devastava psicologicamente os indivíduos e, embora ainda não o soubessem, era stressante.

No entanto, percebe-se nesta comparação temporal, que a grande diferença reside na forma como conseguimos lidar, impor limites em nós e nos outros e ultrapassar as vicissitudes da vida, consoante a naturalidade e a artificialidade dos problemas: se os problemas são do foro natural, a sua resolução será também, mais tarde ou mais cedo, garantida.

Se os problemas já estão relacionados com a incapacidade de lidar com os papéis que a sociedade nos impõe, com as dívidas acumuladas ou com a insatisfação material, ou comparações a sua resolução já não é tão fácil nem dada como garantida.

Quanto mais nos esforçamos a ser aquilo (ou aquele) que não somos naturalmente, mais complexas se tornam as nossas batalhas interiores e menos claros se tornam os nossos problemas. Muitas pessoas colocam demasiada pressão em si próprias sem necessidade nenhuma. E muitas outras que estão na sua “zona”, sentem-se úteis, realizadas, gostam do que fazem e apesar de trabalharem muitas horas sob muita pressão, com frequência dizem “eu não tenho tempo para burnouts…”. Percebe-se. Quando a recente situação de pandemia e de recolhimento obrigatório nos assolou a todos, foi clara a maior dificuldade comum: não é natural que não possamos sair, circular, exercer a nossa dimensão social, trabalhar para sustentar a família ou exercitar. O nosso entusiasmo esmaece.

Tudo o que contraria a nossa natureza, deixa-nos stressados. E, no fundo, o que é que isto nos diz? Keep it simple! Foca-te naquilo que fazes bem e te realiza. Questiona-te se estás no lugar certo. Para quê complicar, tornar tudo mais complexo a cada dia? Contrariar a nossa essência contribui para um dos maiores problemas da sociedade: o burnout verdadeiro.

Perceber o burnout

O burnout pode ser diagnosticado essencialmente através de sintomas como:

  • Exaustão emocional – a sensação de estar no limite, sem forças, esgotado(a) e facilmente irritável;
  • Despersonalização – marcada muitas vezes por uma espécie de cinismo, com distanciamento afetivo dos colegas ou das pessoas que nos são mais próximas;
  • Ineficácia – sentimento de inutilidade do trabalho, baixa realização pessoal, frustração. Parece que nunca se termina nada.

O burnout, em específico, traz dois riscos: o primeiro é não ser diagnosticado quando ele acontece (enquanto doença silenciosa). O segundo é o contrário.

Não devemos confundir burnout com um estado momentâneo de insatisfação. Tentar reduzir a importância de uma situação ou problema com questões como “vale a pena deixar-me afetar por isto?” ou “o que ganho com o facto de me estar a desgastar com isto todos os dias?” são alguns exemplos que podem ser extremamente úteis para perceber em que campo se encontra.

Há muitas outras técnicas e terapias que servem igualmente para avaliar esta questão, incluindo práticas contemplativas ancestrais como a de Naikan, com origem no Japão. De acordo com esta prática, num exercício de retrospetiva profunda, é possível consciencializar que, sem o cuidado da nossa família e amigos não seria possível existir na condição em que o fazemos, com as condições de vida que temos.

O reconhecimento, gratidão e percebermos a realidade tal como ela é que resulta deste exercício, pode conduzir a uma mudança de atitude, a um aumento de confiança e a uma vontade de querer aproveitar as oportunidades, as coisas e as pessoas boas que a vida nos dá.

Isto não é o mesmo que forçar a rejeição dos sentimentos negativos porque isso tem o efeito oposto. É, como referi acima, pôr as coisas em perspetiva o que, muitas vezes, é necessário com alguém (ou alguma técnica) que nos ajude a fazê-lo.

O potencial da aceitação

Nunca, como hoje, tivemos tantos pontos de fuga possível. É relativamente fácil desviar a atenção, tanto quanto a emoção, para um qualquer mural ou canal, para uma súbita necessidade de compra ou de visitar um sítio. Estamos munidos de pontos de fuga que contribuem para anestesiar qualquer emoção menos positiva. Temos soldados desertores quando começam as nossas batalhas interiores de sentimentos bons vs. sentimentos maus e é precisamente a forma como lidamos com o nosso interior que dita a forma como vivemos, como amamos e tudo o que fazemos.

A incapacidade de lidar com a negação, com a dimensão menos positiva da vida, traduz-se num silêncio secreto e numa pressão que não faz mais do que tornar a vida e as rotinas cada vez mais complexas.

A ficção que se vive hoje a nível social, onde cada um se esconde atrás de um mural repleto de momentos felizes, sucessos e bem-feitorias é uma falsidade que tem consequências graves. A tendência para não mostrar a fragilidade, o fracasso ou o erro provoca um autoconfinamento de emoções que alimenta a pressão interior. Até que um dia estoura.

Num mundo cada vez mais complexo, que exige uma plasticidade enorme dos indivíduos para que se multipliquem em papéis e tarefas, a única dimensão em que não conseguirmos ser plásticos é, precisamente, na dimensão emocional.

Neste campo, não há plasticidade nem meio termo. Ou somos os mais felizes do mundo ou estamos em depressão. Não aceitamos o descontrolo emocional inerente à nossa condição natural e, por isso, não conseguimos ser verdadeiramente resilientes.

Susan David apresentou numa incrível Ted Talk o conceito de agilidade emocional precisamente para dar voz a este comportamento que é urgente ver na sociedade em nome de uma saúde mental comum.

Nascemos completamente flexíveis, com capacidade de aprender sobre tudo e de lidar com todo o tipo de emoções, exteriorizando-as da forma mais saudável – em criança, quando estamos tristes ou insatisfeitos, choramos ou mostramos veemente o nosso descontentamento; quando estamos felizes, soltamos gargalhadas, dançamos e saltamos, independentemente do sítio onde estamos ou de com quem estamos. Qual é a verdadeira necessidade de nos tornarmos tão rígidos emocionalmente com o passar dos anos? O que ganhamos em não admitir que algo nos aborrece, como fazíamos de forma tão natural quando nos tiravam um brinquedo ou nos contrariavam em determinada brincadeira?

A vida em si não pode ser separada da sua fragilidade: num dia estamos bem, no dia seguinte somos diagnosticados com algo que vira o nosso mundo do avesso. Mas a nossa postura, o sorriso falso ou a fotografia no Instagram, ainda assim, consegue transparecer o ângulo perfeito. Onde tem lugar a autenticidade nos dias que correm? Desde quando é que o “stay positive” é mais importante que o “stay real”?

Como afirma Susan a certa altura do seu discurso, é cruel e ineficaz negar as emoções que consideramos más porque isso tem precisamente o efeito contrário, como se fosse aquele bocado de chocolate que, quanto mais tentamos ignorar, mais pensamos nele. Quando afastamos ou ignoramos as emoções más, estamos a torná-las mais fortes.

O necessário para enfrentar doenças como o burnout (e a única forma sustentável de conseguir superar doenças desta natureza) é experienciando, na sua máxima essência, as emoções más e conseguir perceber o que elas significam. Se fizermos o contrário, se as ignorarmos, estamos a perder a capacidade de saber lidar com elas e, por norma, quem “paga” o preço são as pessoas que nos rodeiam (tanto ou mais que nós mesmos).

As emoções negativas fazem parte do nosso contrato com a vida e a felicidade autêntica só consegue sê-lo quando aceitamos todas as emoções e temos agilidade emocional para isso.

5 Técnicas para conseguir ter agilidade emocional e ultrapassar o burnout

Para além da relativização e da aceitação já referidas, existem outras técnicas que nos ajudam a ter esta agilidade emocional, entre elas:

  1. Dar importância às palavras – a palavra stress, por exemplo, não quer dizer muito por si só. É o resultado ou consequência de um outro sentimento que deve ser identificado para se conseguir lidar com a causa raiz do que nos deixa stressados. Não devemos confundir efeitos com as causas;
  2. Foco em gerar respostas – perceber o que determinada emoção nos está a dizer é crucial para conseguir responder e reagir face à mesma;
  3. Autoconsciência – perceber como é que funcionamos ajuda a saber lidar com as diferentes situações com que nos confrontamos ao longo da vida. Perceber, por exemplo, qual é o nosso lócus (no conceito de J. Botter) ou lugar de controlo interno. No nosso quotidiano, exigimos mais de nós ou dos outros? Dependemos mais de fatores internos ou externos para justificar os atos e as consequências das nossas ações? Percebemos que uma determinada ação foi resultado do nosso esforço – ou falta dele – ou aceitamos que foi o destino / vontade de Deus? Este tipo de exercício ajuda-nos a ser mais realistas, mais orientados e é crucial para conseguir uma agilidade emocional e mudança interna.
  4. KISSKeep it Short and Simple – não complicar o que é simples e valorizar os bons momentos.
  5. Enfrentar a situação – com foco no futuro e na resolução do problema, a situação deve ser encarada de frente, conversada e posta em perspetiva com coragem.

A exigência do contexto, a velocidade a que somos obrigados a viver a vida nos dias que correm, a ausência de tempo, espaço e silêncio para conseguimos perceber o significado do que fazemos e a importância do papel que desempenhamos não ajuda a uma condição mental plena e saudável a longo termo.

Resta-nos perceber que é mais benéfico e sustentável aceitarmos e conseguirmos lidar com as consequências positivas e negativas que resultam do nosso estilo de vida atual. Afastar o que consideramos mau, como vimos, só serve para amplificar a sua dimensão negativa. Não querer experienciar emoções más não é mais do que ter objetivos de pessoas que estão mortas – só elas não sabem o que é frustração, dor ou desilusão.