Se estivesse no Reino Unido e tivesse votado no referendo, teria votado pelo “remain”. Estou por isso desiludido com o resultado do referendo. Desiludido e preocupado, mas espero que todos saibam ler os resultados com a cabeça fria e não entrem já num jogo de passa culpas ou numa espiral de fuga em frente. Os eleitores falaram, é necessário respeitá-los. E perceber que se a história de Europa mudou hoje, cabe à Europa encarar esta crise como uma oportunidade. É um desafio dramático que exige grandes decisões, mas não é um desafio insuperável.
Como português com muitas reservas relativamente ao actual processo de integração europeia, sinto que o Reino Unido vai fazer imensa falta. Sem ele a Europa pode desequilibrar-se ainda mais a favor dos que defendem o reforço de uma integração que os povos não desejam e mais transferências de poder. Sem ele o peso da Alemanha (mesmo podendo eu defender muitas das políticas da chanceler Merkel) será excessivo e sem ele haverá menos vozes a criticar os evidentes défices democráticos da União. Mas não vale a pena chorar sobre leite derramado: se quisermos mitigar os riscos do futuro temos de trabalhar para ter o Reino Unido o mais próximo possível da União Europeia, não agir com arrogância e de forma retaliatória.
Nestes últimos dias as palavras mais avisadas que ouvi a um dirigente da União Europeia foram as de Donald Tusk, o presidente do Conselho Europeu, durante uma reunião de democratas-cristãos no Luxemburgo: “Obcecados com a ideia de uma integração instantânea e total, não reparámos que as pessoas comuns, os cidadãos da Europa, não partilhavam o nosso euro-entusiasmo”. Mas ele disse ainda mais, e com grande sensatez: “O espectro de uma ruptura ameaça a Europa e não me parece que a melhor resposta seja a visão de uma federação. Temos de compreender as necessidades deste momento histórico”.
Penso por isso que o que este momento histórico nos diz é que a Europa deve abandonar de vez a ideia da bicicleta, tão cara a Jacques Delors, e por uma razão simples: nas bicicletas não há marcha-atrás. Ora o que resultou claro neste referendo britânico é que é necessário perceber que o divórcio é tão grande entre o rumo percebido da Europa e as opiniões públicas de tantos países que, se déssemos a palavra a outros povos, poderíamos contar com mais decisões semelhantes à deste referendo pela saída da União Europeia.
Com a vitória do “leave” o principal erro a evitar é o de achar que, sem os “chatos” dos ingleses, podemos acelerar o caminho para “mais Europa”. E o principal risco a enfrentar é o deste resultado desencadear um processo imparável em direcção oposta, isto é, uma corrida à desintegração da Europa.
Se o “remain” tivesse ganho a tentação de manter tudo como está seria grande. Com a vitória do “leave” isso não é opção, pelo que o caminho que me parece mais razoável é o de encontrar formas de as nações recuperarem alguns dos poderes que foram cedendo a Bruxelas (ou a Frankfurt), devolvendo aos povos a percepção de que controlam os seus destinos.
Sejamos claros: hoje o problema já não é o de saber se há ou não democracia a nível europeu, pois pode-se sempre argumentar que o Parlamento Europeu é eleito por voto universal e directo e que, no Conselho Europeu, se sentam os governos legítimos de 28 democracias. Hoje o problema é que o compromisso europeu se tornou num monstro que não agrada a ninguém e que funciona, ao mesmo tempo, como um excelente bode expiatório para os fracassos a nível nacional. Os gregos e os portugueses culpam Berlim (ou Bruxelas) pelas suas dores, e os alemães queixam-se dos compromissos que foram obrigados a aceitar por causa de gregos e portugueses. Esta tensão não é passageira nem tende a diminuir, antes deverá continuar a aumentar. Se não percebermos isso corremos para o desastre.
Mas há mais e pior. Anos a fio foram-nos vendendo a ideia de que os males da zona euro, por exemplo, eram consequência da sua insuficiente integração. À união monetária faltava, por exemplo, uma união bancária. Agora que temos aí a união bancária estamos a perceber na pele quais as consequências. Será que estamos contentes com o que vimos no caso dos bancos portugueses?
Da mesma forma se falou da falta de mais governo económico, e por isso aumentaram-se os poderes de supervisão de Bruxelas sobre os orçamentos nacionais, um movimento que obriga os parlamentos nacionais a submeterem-se à Comissão, como o nosso Parlamento teve de fazer em Fevereiro. Até posso achar que as correcções impostas por Bruxelas foram boas para Portugal, mas mesmo assim interrogo-me sobre se alguém acha realmente que este processo fez da Europa um espaço mais democrático e de Bruxelas uma capital europeia mais simpática. Não, não foi isso que sucedeu, pelo que poupem-nos à tentação de quererem carregar no acelerador.
Paradoxalmente o caminho a seguir depois do Brexit tem de ser aproximarmo-nos mais do que quase sempre defendeu o Reino Unido, e afastarmo-nos dos cantos de sereia dos utópicos adeptos do “mais Europa” custe o que custar. O caminho, numa Europa que não tem condições para pensar que uma mesma política pode servir as muitas realidades diferentes dos seus países, deve ser o de permitir que existam mais políticas diferenciadas. Ou seja, que existam mais variações nos ritmos de integração e também mais Europa “à la carte”. E que isso seja percepcionado pelos povos como correspondendo às suas escolhas, não a imposições externas.
O que é que isso pode implicar? Que tenhamos de regressar, na medida do possível, a uma Europa mais “mercado comum” (a Europa que melhores provas prestou) e menos “união política” (a Europa que mais problemas criou). Paradoxalmente, de novo, necessitamos do Reino Unido, mesmo que fora da União Europeia, para fazermos esse caminho com sucesso.
Não esqueçamos, por muito tristes que estejamos com a escolha do eleitorado britânico, que o Reino Unido continua e continuará a fazer muita falta à Europa e aos seus equilíbrios. Portugal em particular não pode descartar a proximidade de um país que, por comparação com a Europa continental, é mais atlanticista, é mais adepto da abertura dos mercados, é mais cioso do cumprimento rigoroso das regras democráticas, desconfia mais de modelos uniformes e tem uma cultura política que favorece a tentativa e erro, assim como um saudável equilíbrio de poderes.
Na negociação que agora se abre – e que terá uma duração indicativa de dois anos, nos termos do artigo 50º do Tratado de Lisboa – é por isso do nosso interesse manter o Reino Unido o mais integrado possível com a União Europeia. Temos nisso vantagens económicas evidentes e podemos ter nisso muitas vantagens políticas. Não se deve pois seguir o caminho advogado por algumas cabeças mais quentes, que ameaçaram Londres com fechar-lhe as portas do mercado europeu, um caminho que agravaria qualquer crise económica que o Brexit possa desencadear. Quando menos alterações houver nas regras de funcionamento dos mercados no espaço europeu, melhor para todos.
Volto por isso ao ponto por onde comecei: o tempo é de ter a cabeça fria, não o de agir motivado pelo rancor ou pelo despeito.
José Manuel Fernandes é publisher do Observador
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