Duas semanas a julgar-me cidadão de pleno direito dos E.U.A. – por causa do Afeganistão, é claro, e do inconcebível Presidente Biden – deixaram-me de rastos. Não consigo ser como os outros. Não percebo como é que tanta gente consegue manter durante tanto tempo consecutivo uma ubiquidade nacional consistente, por assim dizer. Eu cá voltei à pátria, com alívio e exclusividade, sobretudo quando reparei na minha caixa de correio.
Ignoro o que se passa com os outros, mas a minha caixa de correio manifesta claramente os efeitos da pandemia. Em longínquos tempos normais, ia retirando o que interessava do que lá tinham depositado – cartas (poucas), revistas, livros, cds -, deixando o resto para ver depois. O problema é que o resto se ia acumulando a uma velocidade surpreendente e eu tinha, em pouco tempo, de fazer uma limpeza radical. Havia propaganda de toda a espécie, que eu arrastava até ao lixo mais próximo.
Desde há algum tempo que sentia uma certa ausência, um vazio, não propriamente angustiante, mas, pelo menos, preocupante. No princípio, não percebi bem o que era, mas depois fez-se a luz. As revistas, os livros e os cds continuavam a chegar, mas a propaganda tinha desaparecido. Já não sei há quanto tempo tinha feito uma limpeza à caixa do correio, mas sem dúvida há muito, muito tempo. E ontem fui ver o que lá estava, no seu fundinho imperceptível. Era propaganda, é claro, mas política. Democraticamente, fiquei contente e trouxe para casa.
Não sou um insatisfeito com a democracia, longe disso. Ia para as ruas em manifestações – ou então fugia – se ela estivesse em perigo. E não me incomoda nada o kitsch que por vezes a acompanha. Se António Costa aparecesse num cartaz vestido de Super-Homem (ou de Tio Patinhas, por causa da bazuca) ou André Ventura de Batman, eu ria-me, mas não via, nem de longe, o fim do mundo a aproximar-se. Por isso fui, com espírito irénico, ver o que os partidos me ofereciam a considerar.
Começo pelo PSD. O PSD oferece-me Vladimiro Feliz para presidente da Câmara do Porto. A julgar pela fotografia, Vladimiro Feliz deve ser um tipo simpático. Sorri, posando numa rua inclinada, e declara que se quer dedicar ao Porto “a tempo inteiro”. Óptimo. Mas Vladimiro Feliz devia dedicar, primeiro, algum tempo aos seus folhetos de propaganda. Detesto (e não apenas por razões óbvias e subjectivas) brincadeiras com os nomes das pessoas, mas começar o segundo dos seis curtíssimos parágrafos do seu prospecto com a frase “Estou feliz por estar de volta a uma realidade que conheço bem” é um pouco absurdo. Bastava trocar “feliz” por “contente”, ou coisa assim – no limite (de mau gosto), “cheio de júbilo”. Agora “feliz” é que não. O eleitor começa logo a perguntar-se: “Então é feliz ou está feliz”? A desconfiança nasce sempre com pequenas coisas.
O PSD oferece-me igualmente, para a minha Junta de Freguesia, Ernesto Galego. Deve ser uma pessoa excelentíssima, que até indica o número do telemóvel e o email para o contactarmos. Francamente, acho porreiro. Ignoro por inteiro o que é que ele quer para Cedofeita, mas não faz mal. Acredito que só queira o bem. Se ele quiser o mal, telefono-lhe e ouve das boas. E se lhe escrever, então…
Temos agora o Chega. O Chega joga numa dupla: o candidato à Câmara – António Fonseca – e o special guest star André Ventura, ambos juntos “pelo Porto, com alma para mudar!”. António Fonseca deve ser um cavalheiro impecável e André Ventura toda a gente o conhece. Mas esta coisa dos cartazes com duas figuras, uma da quais nada tem a ver com o lugar a que a outra se candidata coloca alguns problemas. Lembro-me de quando chegava à Faculdade de Letras e via sempre um enorme cartaz onde o candidato a eurodeputado do PS, Pedro Marques, apontava numa direcção misteriosa, acompanhado de António Costa, com o seu melhor tutelar sorriso Mao Tsé-tung. Logo imaginávamos Costa perfeitamente nas tintas para a direcção do bracinho do candidato e muito preocupado com a sua direcção própria. Quando Pedro Marques declarou recentemente, respondendo a um questionário do Público, “O meu maior medo é a irrelevância”, não era preciso dizer.
Finalmente, o que me oferece o PS em pessoa? Oferece-me Tiago Barbosa Ribeiro. É o único que já conhecia. Lembro-me dele do tempo de Passos, quando ele citava energicamente Zizek e Varoufakis, creio (posso estar errado), e depois, por causa de um sms qualquer, que foi muito falado, que ele recebeu de Azeredo Lopes. Tiago Barbosa Ribeiro, que deve ser uma personalidade admirável, diz que “O Porto quer mais!” e, de acordo com a sua proclamada convicção, escreve muito mais do que os outros. E escreve mais para dizer os muitos “mais” (exactamente nove) que quer para o Porto. Começa com “Mais Ambição” e acaba com “Mais Coesão Social”. Acham muitos “mais”? Haviam de ver a lista de malefícios de Rui Moreira que ele enumera. Por mim, novecentos “mais” eram poucos.
Por uma análise rápida dos folhetos, não é difícil deduzir que Rui Moreira vai ganhar, e de longe, as eleições para a Câmara.
Esperem. Também há a propaganda de uma pizzaria com entregas ao domicílio. Há 14 pizzas diferentes (incluindo uma “Super Carbonara”), com sugestões criativas para os clientes participarem na confecção (molhos, etc.). Foi o folheto que mais tempo me gastou. Provavelmente, há algo em mim que ainda suspira pela democracia participativa. Mas a “Super Carbonara” ficou-me na cabeça, até porque tenho a teoria (pouco sofisticada) que a qualidade de um restaurante italiano se pode aferir a partir do Spaghetti Carbonara que serve. E essa reflexão teórica elevada lembrou-me um restaurante italiano simpático e onde se comia uma Carbonara razoável que havia numa rua não muito longe de minha casa e que fechou por causa de umas obras de canalização, já nos tempos de Moreira, que duraram um tempo infinito. A rua estava toda esburacada e o pó voava por todo o lado, rodeado por uma barulheira omnipresente. O tempo passava, passava, e a coisa não parava. Assisti, como um resistente (Remember Los Alamos!), à deserção de todos os clientes, que eram muitos, por causa da incúria mexicana da Câmara. E tive pena.
Moreira terá perdido alguns votos (nem sequer falo de mim: não voto no Porto), mas Feliz, Fonseca e Ribeiro não me parecem, francamente, competidores à altura.